quarta-feira, novembro 30, 2005

Breve Apresentação de P.-J. Proudhon

Agora que tem à sua frente, Senhor Leitor, muitos dos meus textos sobre Proudhon, algumas questões prévias são necessárias esclarecer, sobre o homem que por vários motivos é ostensivamente esquecido, embora sejamos visceral e culturalmente seus herdeiros. O meu objectivo não é esclarecer totalmente este problema, pois isso implicaria a escrita dum livro, o que não é o objectivo deste pequeno texto. Daí que opte pelo sistema dum questionário, somente com a pretensão de lhe aguçar a curiosidade.


Questionário:


Qual foi o primeiro crítico do comunismo marxista salientando claramente o seu dogmatismo e o seu autoritarismo o que só podia levar à repressão e a uma sociedade acrítica?

Resposta: P.-J. Proudhon.

Qual foi o fundador da Ciência Social, mais tarde designada por Sociologia, juntamente com Augusto Comte?

Resposta: P.-J. Proudhon.

Qual o primeiro teórico sobre a temática do Federalismo, tão badalada hoje em dia e que levanta o futuro da Comunidade Europeia?

Resposta: P.-J. Proudhon.

Qual foi aquele que pela primeira vez fez uma crítica à propriedade privada dos meios de produção, e que foi considerada uma abordagem científica?

Resposta: P.-J. Proudhon.


Qual foi aquele que pela primeira vez claramente colocou a dimensão do Trabalho em oposição com o Capital?

Resposta: P.-J. Proudhon.

Quem foi aquele que pela primeira vez falou e tematizou uma ciência da Economia Política?

Resposta: P.-J. Proudhon.


Quem foi aquele que pela primeira vez e claramente separou o socialismo científico do socialismo utópico?

Resposta: P.-J. Proudhon.


Quem foi o apologista da autogestão?

Resposta: P.-J. Proudhon.


Quem foi aquele que verdadeiramente fez uma crítica consistente à dialéctica Hegeliana tripartida (Tese, Antítese e Síntese) e não se limitou como fez Marx com a sua dialéctica em torná-la directamente oposta à do Mestre.

Resposta: P.-J. Proudhon.


Quem foi o primeiro a iniciar e a tematizar o problema da propriedade literária e dos direitos de autor?

Resposta: P.-J. Proudhon.

Quem foi aquele que fez pela primeira vez uma crítica ideológica à Igreja Católica?

Resposta: P.-J. Proudhon.

Quem foi aquele que tematizou o tema das Relações Internacionais em torno da Guerra e da Paz de tal modo que Tolstoi em honra dele utilizou o título duma sua obra “Guerra e Paz” para o seu romance mais importante e património literário da Humanidade?

Resposta: P.-J. Proudhon.



Este questionário poderia continuar, mas do meu ponto de vista é suficiente para poder atingir os seus objectivos. Se a esta altura da leitura este questionário não lhe tiver aguçado a curiosidade, aconselho a não ler mais nada. Se pelo contrário, como penso, mesmo que não conheça Proudhon, ou conheça mal, este questionário lhe tiver chamado a atenção para a importância fundamental da sua obra verdadeiramente enciclopédica, então deve realizar as leituras que se lhe impõem.
Se for necessário poderei, em qualquer altura, elucidá-lo sobre algum aspecto que precise de melhor esclarecimento.

Obrigado pela atenção dispendida

terça-feira, novembro 29, 2005

ACERCA DAS FONTES IDEOLÓGICAS DA DISCUSSÃO FILOSÓFICA.

O século XVIII dos Enciclopedistas e dos materialistas franceses já nos tinham mostrado implicitamente, enquanto que os diversos tipos de socialismo do século XIX de modo explícito que a luta de opiniões não constituía, de modo algum, a diferença específica da filosofia.
Mas então, em que se destingue a discussão filosófica do debate das ciências particulares? À primeira vista, a oposição materialismo - idealismo é inteiramente determinada pelas soluções diametralmente opostas que um e outro trazem para a questão fundamental da filosofia. Porém, se imagina que o materialismo e o idealismo estão longe de ser simples pontos de vista exclusivos, que se trata de duas grandes concepções filosóficas do mundo, cuja confrontação constitui o conteúdo essencial do desenvolvimento da filosofia, verifica-se imediatamente a insuficiência de tal explicação desta polarização fundamental.
Historicamente, o idealismo desenvolve-se no campo da concepção religiosa do mundo, com a qual conserva, durante séculos, uma ligação directa ou imediata. A história do materialismo, pelo contrário, é inseparável dos movimentos anti-clericais, anti-religiosos, ateístas. Não seria mais correcto concluir que as soluções opostas da questão fundamental da filosofia não são mais que as justificações teóricas de uma posição filosófica que em última análise, não assenta inteiramente em postulados teóricos? No tempo em que foi uma classe revolucionária, a burguesia ensinava de boa vontade a filosofia materialista, que renegou desde que se tornou uma classe conservadora, instalada no poder político. A crítica moralizante do materialismo, que tão bem caracteriza a classe burguesa que se formou, a condenação permanente, não só pelos idealistas que analisam, melhor ou pior, o conteúdo teórico, mas também pela grande imprensa burguesa que evitou abordar o fundo dos problemas filosóficos, é uma facto que esclarece, se não a natureza das divergências teóricas entre as duas grandes correntes, pelo menos a base social desta luta de ideias.
Longe de nós querermos reduzir a oposição materialismo-idealismo a uma oposição entre classes exploradoras e exploradas, como a trivialidade dos pensadores marxistas ou marxizante faz: há séculos, uma e outra coexistiam no âmbito de uma mesma ideologia, por exemplo, escravagista ou burguesa. Não é essa a prova de que assumem funções sociais diferentes nas diversas fases do desenvolvimento da mesma classe, ou que exprimem as contradições entre os diferentes grupos sociais que as constituem? E se acontece que o idealismo se apresenta como a ideologia das classes vanguardistas e progressistas e por isso mesmo revolucionárias, isso não indica igualmente que as formas historicamente determinadas pelo idealismo estão objectivamente condicionadas por factores, necessidades e interesses de ordem sócio-económica?
Seria não menos antiobjectivo e anticientífico ver na luta que opõe racionalismo e irracionalismo uma simples discussão teórica. A estreita relação que existe entre as ideias socio-políticas da burguesia dos séculos XVII-XVIII e o culto racionalista da razão, a certeza de que é possível e necessário reorganizar a vida social segundo princípios racionais, torna-se particularmente evidente sobre o pano de fundo da crítca irracionalista contemporânea das utopias racionalistas, às quais os críticos de hoje tanto ligam o reconhecimento da realidade do progresso social em geral. O idealismo irracionalista contemporâneo não poderia ser compreendido se não se visse nele senão a antítese do racionalismo, historicamente ultrapassado, dos séculos XVII e XVIII, isto é, se o examinasse, à margem dos cataclismos sociais que corroem a sociedade capitalista de hoje, cujas tradições filosóficas progressitas as ideologias não podem deixar de renegar, pela razão de que são adversários irreconciliáveis daqueles que as herdaram.
Passados os meados do século XIX, a maior parte dos filósofos e historiadores da filosofia admite, directa ou indirectamente, a ligação essencial que se estabeleceu entre as doutrinas e as discussões filosóficas e as circunstâncias que são fundamentalmente independentes da filosofia. Uns consideram estas últimas como deformando o desenvolvimento imanente do pensamento filosófico, outros, pelo contrário, acreditam que a confrontação das ideias filosóficas é inspirada pelo processo social.
Porém, esta concepção do processo social tem, geralmente, um carácter muito indeterminado e, a maior parte das vezes, consiste em admitir a existência de um elo irracional entre a filosofia e a posição pessoal do pensador. Isto faz com que, mesmo que se admita que as origens da discussão filosófica não se situam ao nível do pensamento, mas na vida, esta nunca seja interpretada senão psicologicamente, como um conjunto de emoções independentes de consciência e determinando-a. Esta distorção irracionalista da profissão de fé e da historicidade do pensador torna-se a prática irremediavelmente inimiga da explicação materialista e histórica da natureza e da origem da discussão filosófica.
A psicologia social pode, na verdade, ajudar a esclarecer esta discussão, mas não permite ultrapassar o campo de consciência social, de que a filosfia é uma das formas. A convicção de que a filosofia não existe independentemente das outras formas de consciência social, que se encontra em interacção com elas, desempenha um grande papel na clarificação dos motivos variados da discussão filosófica, mas não permite revelar a origem, o sentido e o carácter historicamente determinados. Para isso, é preciso passar do exame da consci~encia social à análise do ser social. Porém, é toda uma outra via que preferem escolher os filosóficos que se esforçam por revelar o fundo da discussão e se dirigem para isso ao indíviduo filosofante, ao seu temperamento, ao se psiquismo. Esta interpretação de ordem subjectivista e irracionalista do fundo do debate filosófico é particularmente típica para William James, que se declara que a filosofia "é o nosso modo individual de ver e de sentir a vibração total e a pressão dos cosmos".
As divergências filosóficas são então reduzidas ao nível das diferenças entre individualidades criadoras; qaunto ao conteúdo social e histórico da discussão, é totalmente ignorado: os grandes filosóficos têm temperamentos particularmente fortes.
Sabe-se que para James o conteúdo das filosofias era determinado pelo temperamento do filósofo, "duro" ou "afável". No tipo humano "duro", colocava o empirismo, o materialismo, o pluralismo, o pessimismo, o determinismo, o cepticismo e alguns outros; e no tipo "afável", o racionalismo, o idealismo, o indeterminismo, etc. Eis uma característica subjectivista dos protagonistas da discussão filosófica que têm por efeito opõr integralmente a filosofia, tanto às ciências como à prática social; quanto ao aspecto cognitivo da filosofia e da discussão filosófica, é ignorado pura e simplesmente. E cada um pode verificar que a tentativa burguesa, respeitante à caracteristica social, ideológica das contradições entre doutrinas filosóficas, corresponda praticamente a negar o que admite em palavras.
Assim, os filósofos burgueses afirmam frequentemente que a essência do debate filosófico depende da liberdade de expressão, da sua independência face à política, à ideologia e até à ciência. Como não lembrar aqui esta observação de Hegel: "Quando se trata da liberdade, convém sempre ver se não se fala, no fundo, de interesses privados." A filosofia burguesa assume uma função ideológica muito precisa, mesmo quando se proclama independente da ideologia e da religião. Em que é que isso se manifesta? Manifesta-se no facto de adoptar "livremente" os dogmas ideológicos burgueses, as convicções religiosas, que apresenta como conclusões teóricas tiradas de proposições filosóficas abstractas.
O domínio das forças sociais a que leva a sociedade capitalista evoluída confere inevitavelmente às discussões entre filósofos burgueses um carácter não científico e estéril. Compreendemos então Jean Piaget, que fala a este respeito de um "género de diálogo de surdos".
Mas é preciso explicá-lo. Qual a sua causa? A natureza da filosofia? É o que dizem os neo-positivistas e os representantes da análise linguística. Porém, uns e outros fingem que não vêm a atmosfera ideológica em que se situa a discussão filosófica dentro da sociedade burguesa. Nestas condições, como se poderá explicar, por exemplo, o renascimento tomista, observado nalguns países capitalistas? A obstinação do neo-tomismo em conciliar o hilermorfismo aristotélico com as últimas consquistas das ciências é uma prova concreta da influência determinante que a ideologia política e religiosa da sociedade burguesa exerce sobre o desenvolvimento da filosofia e o carácter da discussão filosófica.
A condição inevitável das discussões filosóficas é a presença de múltiplas doutrinas, escolas e grupúsculos, correntes e tendências. Aliás, isto faz o desespero de um certo número de filósofos burgueses, que falam com amargura da anarquia dos sistemas filosóficos. Outros julgam ver neste pluralismo o triunfo do princípio da autonomia das filosofias, da independência do pensamento filosófico em relação aos factores externos, políticos, científicos e ideológicos. Na verdade, esta dispersão do pensamento filosófico burguês numa multiplicidade de correntes ilustra muito normalmente a essência do regime capitalista, em que as doutrinas filosóficas concorrentes solicitam as consciências por vias e meios eternamente diversos. Mas, todas juntas, estas doutrinas concorrentes desempenham, em geral, a mesma função ideológica.
As filosofias burguesas do nosso tempo afirmam que, se o momento favorável se apresentar, será possível entender-se e ultrapassar os pontos de vista filosóficos exclusivos, se os protagonistas da discussão chegarem a acordo sobre o sentido dos termos utilizados, sobre as regras da discussão, sobre um fim humanista comum. Trata-se, como é evidente, de uma utopia bem intencionada num mundo de classes e de sistemas sociais antagónicos.
A complexidade específica dos problemas filosóficos cuja solução conserva sempre a porta aberta para um novo desenvolvimento, face aos novos dados científicos ou históricos não basta para explicar por que se vê renascer pontos de vista filosóficos historicamente ultrapassados, concepções refutadas de longa data. E os choques que se produzem a este respeito não poderiam ser julgados correctamente sem uma análise das origens ideológicas das divergências internas numa sociedade, cuja estrutura contraditória torna impossível, por definição, a unidade ideológica. Os mesmos motivos ideológicos manisfestam-se nas discussões actuais sobre o tema da alienação, nas diversas interpretações do problema do homem, na análise da relação entre o antropológico e o social, na concepção do humanismo, etc.
Caracterizando as fontes ideológicas da discussão filosófica, convém evidentemente ter em vista que a ideologia não se conserva inalterável, que o seu desenvolvimento, da mesma maneira que a pluralidade das suas formas históricas, adquirem a sua expressão específica na filosofia. Isto é inteiramente corroborado pela análise das proposições filosóficas que qualificam a relação a certos factos suficientemente evidentes, que ninguém pensa em discutir.
Em filosofia, muito mais que nas ciências, é-se obrigado a voltar sem cessar à diferença entre os conhecimentos (no sentido de que Leibniz falava de verdade de facto) e as convicções, que, na verdade, podem assentar sobre conhecimentos, são as convicções científicas, mas não se reduzem a eles. Fernão de Magalhães estava convencido da existência de um estreito ligando o Atlântico e o Pacífico. A hipótese foi confirmado pela sua viagem.
A teoria das ciências da natureza inclui assim muitas convicções que servem de guia aos investigadores. E essas convicções são quer corroboradas, quer refutadas pelas descobertas, as experiências. Em caso de refutação, renuncia-se geralmente a elas. A situação é diferente em filosofia, onde as convicções não poderiam, de uma maneira geral, ser directamente confirmadas ou infirmadas pela experiência. Temos o exemplo dos cientistas Ernst Mach e Wilhelm Ostwall que eram também filósofos e que recusavam admitir a existêncai objectiva dos àtomos, dado que os fenómenos físicos e químicos de que se ocupavam na sua época podiam explicar-se sem recorrer à hipótese da estrutura atómica da matéria. Esta atitude de negativa, todavia, derivava menos das suas convicções científicas do que das filosóficas. Mach reduzia todo o existente às sensações (ora os átomos não são apercebidos pelos sentidos) e Ostwall à energia considerada primeira em relação ao físico e ao psíquico. A prova experimental da estrutura atómica da matéria obrigou estes dois cientistas a admitir a realidade dos Átomos. Mas, nem um nem outro, por isso, renegou as suas concepções filosóficas.
Por outro lado, a filosofia, que discute as questões da vida humana, da ética, da estética, não podia recorrer aos processos em uso nas ciências para verificar as suas próprias afirmações, e se o tenta, esses processos parecem muito pouco eficazes.
Sendo as convicções a expressão de um determinado ponto de vista, de um certo juiz sobre factos precisos, não são todavia uma descrição. Deste modo, podem antagonizar-se ou excluir-se reciprocamente, mas a questão já não se coloca, propriamente falando, ao nível da verdade ou do erro, mas, mais rigorosamente na da apreciação do comportamento humano, que pode ser caracterizado como correcto ou incorrecto, racional, ou não, moral ou imoral. Porém, esta apreciação teórica de convicções filosóficas opostas está longe de ser sempre possível, sobretudo se estas reflectem situações históricas distintas e não são, portanto, exclusivas sobre o essencial, ainda que não possam ser conciliadas.
Uma confrontação deste género pode ser ilustrada pela velha questão filosófica da atitude do homem, face à realidade da sua natureza mortal. Como bom continuador da tradição do epicurismo e do estoicismo antigos, Montaigne declarava que o homem não é capaz de gozar racionalmente os prazeres da vida senão na medida em que medita constantemente sobre a morte e ultrapassa o medo que esta lhe ispira. Montaigne partilha o pensamento de Cícero, segundo o qual filosofar não é outra coisa senão preparar-se para a morte. "Retiremos-lhe o seu mistério, diz ele, discutamo-la, habituemo-nos a ela, não pensemos senão na morte. A todo o momento, imaginemo-la sob todas as suas formas possíveis... Não sabendo onde a morte nos espera, esperemo-la em toda a parte. Meditar sobre a morte, é meditar sobre a liberdade. Quem aprendeu a morrer, desaprendeu a ser escravo. Estar pronto a morrer, liberta-nos de qualquer sujeição e imposição."
Compreende-se facilmente que este raciocínio de um filósofo céptico diverge radicalmente do sermão religioso medieval, que cultivou o medo da morte e a inevitável recompensa na vida de além-túmulo pelas dificuldades da virtude religiosa na vida terrena. montaigne é assim o percursor da doutrina racionalista de uma vida em harmonia com a razão. O que não impede que Spinoza, representante clássico da ética racionalista, que continua, à semelhança de Montaigne, a tradição epicurista e estóica, se distinga notavelmente na concepção que tem da atitude racional face à morte. "A coisa do mundo na qual o homem liberto pensa menos, diz ele, é a morte e a sua sabedoria não é a meditação sobre a morte, mas sobre a vida".
Nós que comparamos estas duas convicções opostas, vimo-nos em dificuldade para dar razão a um ou a outro dos dois grandes pensadores. Num certo sentido, ambos têm um ponto de vista válido e não fazem mais, afinal, do que exprimir de maneira diferente as convicções humanas do seu tempo. É importante que a discussão entre convicções filosóficas diferentes saiba distinguir o que é a luta entre a verdade e o erro por uma lado, e por outro, o que é a divergência de opiniões, exprimindo uma atitude diferente, justificada pelas contingências, em relação aos factos cuja existência não é posta em dúvida. Desta maneira, a pluralidade das convicções no âmbito de um dado tema filosófico não exprime nunca senão a pluralidade das atitudes humanas face a factos universalmente reconhecidos.
Alguns investigadores seriam a confundir as convicções e as crenças, a negar a diferença de princípio entre a fé na existência de um mundo material objectivoe a fé religiosa. Esta confusão entre conceitos perfeitamente incomparáveis explica-se de maneira diferente: uns falam da irracionalidade das convicções, quaisquer que elas sejam, os outros admitem, pelo contrário, que as convicções provêm da experiência, mas interpretam-nas subjectivamente, isto é, como o simples comjunto das emoções individuais. E vê-se surgir neste caminho noções também totalmente desprovidas de conteúdo objectivo, que, como por exemplo, a experiência religiosa, de acordo com tentaivas fideístas, pretendem provar a realidade do sobrenatural, a apartir da experiência íntima do indivíduo.
Certamente, aquele que não se embaraça com questões filosóficas admite a existência do mundo material sem qualquer meditação prévia sobre este assunto. Pode dizer-se que tem a certeza da sua existência, ou até que acredita na sua realidade independentemente da consciência; mas pensamos que é mais correcto dizer que esse homem confia simplesmente no testemunho dos seus sentidos. Praticamente, o homem vive num mundo de objectos e de seres, que não dependem da sua consciência. Esta existência autónoma da realidade material é-lhe constantemente provada pela sua experiência quotidiana, pela sua acção prática, quer ele tenha, ou não, consciência disso. Não julgamos útil demonstrar que esta convicção respeitante à existência de uma realidade objectiva difere cruelmente da fé num mundo sobrenatural, que é expressamente alimentada por uma subjectividade de determinada espécie, historicamente originada pelo domínio de forças espontâneas da evolução social sobre os seres humanos. Isto respeita, ao mesmo tempo, às crenças religiosas e aos múltiplos preconceitos burgueses e pequeno-burgueses.
Desde que a filosofia existe, formaram-se as convicções e as crenças mais diversas. Umas são semelhantes às convicções científicas, isto é, baseaim-se sobre factos mais ou menos solidamente estabelecidos; outras não estão de acordo com os factos ou até os contradizem. Porém, mesmo neste caso, temos um reflexo dos factos: algumas necessidades, alguns interesses sociais, a defesa de relações sociais, de tradições caducas, etc. E vê-se que a discussão entre as convicções filosóficas tem raízes históricas e ideológicas longínquas, exprimindo-se sempre pelas mais variadas formas especulativas.
A mesma função ideológica, a mesma orientação histórica, é formulada diferentemente, consoante as condições e as tradições em causa, pelas filosofias que se enfrentam. O princípio neo-tomista de harmonia da ciência e da religião e o princípio diametralmente oposto dos filósofos de inspiração protestante, que afirmam que um abismo sem fundo separa a ciência e a religião, não saõ, afinal, como vimos, senão maneiras diferentes de atingir um único e mesmo fim: a apologia da religião. Ora, o facto de reconhecer uma oposição radical entre a ciência e a religião pode servir não só o propósito fideísta, consistindo em depreciar ao máximo o valor cognitivo da ciência, mas também o propósito materialista e ateísta que consiste em recusar a religião. É por isso que o conflito ideológico assume na filosofia a forma específica da discussão teórica, em que cada um dos protagonistas observa as regras da lógica, argumenta e demonstra e não se limita a declara a sua convicção. Esse é um imperaticvo válido para toda a gente, incluindo os adeptos do alogismo que tentam demonstrar a inconsistência gnosiológica do pensamento lógico com a ajuda de argumentos lógicos.
Assim, a discussão filosófica, embora indo buscar as suas convicções à luta ideológica, exprime a autonomia relativa da filosofia como forma específica do conhecimento do real. A cadeia das conclusões lógicas, constituindo afinal um sistema de convicções filosóficas, é dominada em grande parte pelos postulados lógicos de partida, que não poderão reduzir-se a verificações de factos isolados, visto que as proposições filosóficas, em virtude da sua universalidade real ou suposta, não podem ser confirmadas por factos isolados.

A TEORIA DAS CLASSES DE MARX E ENGELS E O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DO PENSAMENTO SOCIAL.

Tem sido dito que toda a sociologia moderna é um debate com o pensamento de Marx. Em muitos aspectos, esta afirmação écorrecta, e um elemento fundamental na sociologia de Marx é a função que atribui às classes sociais. Para ele, as classes são o motor do desenvolvimento social. Na verdade, de acordo com Marx, houve um período de comunismo primitivo, e haverá uma sociedade sem classes no futuro, mas a maior parte da história humana conhecida, tal como o declara o Manifesto Comunista nas suas palavras iniciais, tem sido a história da luta de classes. Mais concretamente, a luta de classes em si é apenas uma manifestação de transformação e de conflitos que são edémicos na sociedade. A sociedade está continuamente em desenvolvimento e os diferentes grupos de indivíduos têm interesses diferentes em jogo, que procuram promover e defender; os mais importantes desses grupos são aqueles que ocupam uma posição semelhante num sistema de produção-classes.
Porque ocupam posições diferentes no sistema produtivo, as classes entram em conflito umas com as outras. A classe que possui os meios de produção está apta a apossar-se do excedente e a manter as outras classes em posição de sujeição. Contudo, a classe explorada não resiste inevitavelmente, nem mesmo põe em questão o direito de classe dominante para governar. Nas fases iniciais de desenvolvimento de um novo sistema produtivo elas podem mesmo assegurar certos benefícios aliando-se com uma nova classe em ascensão que derruba uma classe dominante mais antiga e que se opunha a ambas.
Isto é, apesar da divisão da sociedade em classes que estão, pelo menos potencialmente, em conflito (na medida em que o excedente social produzido pelos camponeses ou pelos operários é apropriado pelos que possuem os meios de produção - terras, máquinas, capital), as classes antagónicas não estão, necessariamente, sempre em conflito aberto e directo. Os explorados, na verdade, nem sequer se tornam necessariamente conscientes de que são uma classe. Assim, em virtude da sua situação, os indivíduos podem estar "objectivamente" em conflito, se bem que subjectivamente lhes falta esta "consciência de classe".
Marx, seguindo a teoria económica clássica deveras ortodoxa, distinguiu três classes fundamentais, cada uma das quais era caracterizada na sua função dentro do sistema produtivo pelo "factor de produção" que controlava -os latifundiários, obviamente, por possuírem terras; os capitalistas ("burguesia") por possuírem capital; e os proletariados (classe operariada) por "possuirem" a sua força de trabalho. Para a economia clássica, cada uma destas classes era necessária e também uma componente economicamente criadora no processo produtivo, cada uma desempenhando uma actividade funcionalmente útil ao fornecer os "factores" necessários: terra, capital e trabalho. Contudo, Marx considerava as relações entre as classes não como sendo de complementaridade funcional e muito menos de harmonia, mas sim como relação de desigualdade social, de exploração económica e do domínio político dos operários pela burguesia. Assim, a retribuição ao capitalista pelo seu capital - lucro - e a retribuição ao latifundiário pelas suas terras - renda - eram de um tipo diferente do da retribuição obtida pelo operário pelo trabalho que efectuava. Efectivamente, o operário era o único destes três agentes económicos, que era um verdadeiro produtor. Mesmo o capital do capitalista não era uma coisa que ele tivesse produzido. Era simplesmente o resultado do trabalho anterior dos operários - produtores "congelado" ou incorporado sob a forma de capital. Na medida em que o trabalhador produzia mais do que aquilo que recebia em troca, sob a forma de salários, esta "mais valia" ia para o possuidor dos meios de produção. O capital do capitalista vinha inicialmente deste excedente extraído ao operário - e daí o conflito intrínseco entre eles. A classe explorada não era inevitavelmente revolucionária. Os operários industriais, ao defender os seus interesses lutando por aumentos de salários ou por melhores condições de trabalho, restringiam normalmente as suas reivindicações a questões estritamente económicas e limitavam as suas exigências ao seu emprego particular, ao seu estabelecimento, fábrica ou sector industrial. Não se associavam nem colaboravam expontaneamente com outros operários para formar organizações "da classe operária", nem mesmo para fins estritamente económicas. Muito menos se movimentariam, necessariamente, para além das questões económicas, enquadrando-as em questões políticas mais amplas. Podiam, assim, ter aquilo que Lenine viria a chamar mais tarde uma "consciência sindicalista", mas não uma "consciência política". Porém, os operários podiam até não chegar a possuir uma simples "consciência sindicalista" de si próprios como classe, especialmente quando trabalhavam em oficinas debaixo das ordens de um patrão que os controlava directa e pessoalmente, quer através de métodos repressivos quer recorrendo a métodos paternalistas. Podiam, assim, constituir uma classe na medida em que ocupavam uma situação comum num sistema produtivo, mas, muito embora o investigador pudesse ver que todos eles se encontravam nas mesmas condições e eram explorados de modo semelhante, e embora cada homem individualmente pudesse sentir ou mesmo compreender que estava a ser explorado, os operários não se consideravam como sendo, e muito menos como agindo em termos de classe. Eles eram, na definição clássica de Marx, uma "classe em si" mas ainda não uma "classe para si". À situação objectiva de uma posição comum no sistema de produção necessitava de ser acrescentada a consciência subjectiva de classe, ou seja, dos seus interesses comuns, antes de se poderem tornar uma classe em sentido estrito. A teoria de Marx não é, portanto, apenas um "determinismo económico", como se afirma vulgar e frequentemente, nem é sequer uma teoria "objectiva" das classes porque, para ele, uma classe nunca o poderia ser completamente sem esta interligação entre a consciência subjectiva dos operários e as suas condições de vida objectivas, a que chamava interligação "dialéctica". A consciência subjectiva para Marx não era, pois, uma consequência automática da exploração, mas sim algo que se desenvolve e emerge com o decorrer do tempo. Na verdade, os pobres têm sido muito passivos ao longo da história. A consciência de classe desenvolve-se, em parte, porque as facções antagónicas se digladiam e acabam por fazer alianças com grupos diferentes das diversas facções. Ficam a saber quem é o inimigo e quem é o amigo, mas apenas ao longo do processo de actuação na sociedade.
Todavia, os indivíduos também pensam, e alguns têm tempo e capacidade para o fazer de forma elaborada: a chefia política e intelectual é frequentemente garantida por "intelectuais" cujo papel é o de fomentar ideias, fazer análises, consciencializar e comunicar essas ideias aos outros.
Como vimos, para Marx, o poder económico dava aos ricos os recursos e o controle autoritário sobre os indivíduos, o que lhes permitia exercer também o poder político, pois que se a produção era uma actividade social fortemente cooperativa, a apropriação do excedente era um acto altamente anti-social, resultante da propriedade privada. Em consequência, cada classe de pessoas tendia a associar-se com aqueles com quem tinham afinidades e a ter o seu conjunto de ideias e a sua visão característica acerca do mundo em que viviam. As classes não eram, portanto, simplesmente um "fenómeno económico", mas tanbém social, penetrando em todas as áreas da vida social. Poder, riqueza, prestígio social e religioso, modos de vida culturalmente distintos, tendiam a estabelecer uma certa coesão e a formar um padrão diferente - "uma cultura de classe" - para cada classe social. Porém, o "peso" de cada um destes vários atributos não era igual, pois a posição de um indivíduo dentro de um sistema de produção era o factor que Marx considerava como o que fundamenta todas as suas restantes relações. O "modo de produção" numa sociedade - a maneira como essa sociedade organiza o trabalho e o capital, homens e instrumentos para produzir mercadorias - é o fundamental ou base sobre que se erguem todas as outras instituições importantes da vida social.
As principais instituições de uma sociedade reflectem os interesses da classe social dominante. Estas instituições estão em conformidade com os interesses daquela minoria que controla tanto a produção económica como a sociedade, ou pelo menos não os põem em perigo: por outras palavras, a complexa vida cultural da sociedade no seu conjunto assenta numa base económica.
Todas as restantes esferas da vida social - as ideias dominantes da época, a família, a religião, o direito -"reflectem" ou são moldadas pelas relações estabelecidas na produção - por exemplo, no direito, a importância do contrato reflecte a relação básica entre patrão e operário na sociedade capitalista - contrato segundo o qual o operário se compromete a trabalhar umas tantas horas e o patrão a pagar em troca um certo salário. A sua relação fora do trabalho não diz respeito legalmente a qualquer das partes; o patrão não tem qualquer responsabilidade pelo alojamento do seu operário, pela saúde dos seus filhos, etc. É uma relação económica na qual cada parte contratante aceita desempenhar certas tarefas, e não tem mais obrigações sociais para com a outra. O contraste entre esta estrutura de relações, simbolizada pelo contrato, que Marx pensou que tipificava a sociedade capitalista, na qual a única relação importante entre dois indivíduos era a relação estabelecida por aquilo a que ele chamava o "músculo monetário", e a estrutura de relações, por exemplo, na sociedade feudal, é muito nítido, pois numa sociedade feudal um indivíduo devia ao seu senhor uma longa série de obrigações sociais, e o senhor devia-lhe, em contrapartida, também vários serviços. As relações entre os dois não eram, pois, simplesmente uma relação económica unilateral, mas sim uma relação social muito mais ampla e que se pode mesmo considerar global, sendo não obstante uma relação de exploração. As relações legais do operário com o patrão, na sociedade capitalista, parecem, no entanto, definir-se entre duas partes formalmente iguais e que atingem livremente um acordo.
De facto, diz Marx, esta igualdade é falsa e a liberdade do operário ilusória. Formalmente, a lei parece tratar ambas as partes igualmente, porém isso é um engano. A lei funciona para proveito do poderoso, por vezes porque o operário está directamente privado de direitos legais (como quando os sindicatos são proíbidos) ou, mais indirectamente, porque o operário pode ser demitido em qualquer caso, ao passo que ele não pode, de modo semelhante, despedir ou punir o patrão. Apenas através da organização colectiva (sindicato, partido político) a posição do operário pode ser fortalecida; este fortalecimento do poder dos operários conduziria eventualmente à revolução. A revolução ocorreria nos países capitalistas mais desenvolvidos, onde a estrutura social da produção estava mais avançada, visto que milhares de operários cooperavam na produção de um produto, mas onde os patrões continuavam a apropriar-se do excedente segundo a lógica da propriedade privada. Em tais condições de produção "socializada", o apropriador privado era, claramente, um anacronismo, pelo que acabaria por ser banido, e o excedente posto à disposição de toda a sociedade; daqui decorre o termo "socialismo". Dali em diante, o sistema de produção dispensaria o capitalista e seria dirigido então pelos produtores efectivos no interesse geral de toda a sociedade.
Como fazemos notar, a teoria de Marx é essencialmente uma teoria do desenvolvimento. Ele considerou a história como uma sucessão de fases históricas, cada uma com as suas características próprias e com o seu modo de produção dominante: as fases antigas, asiática, feudal e capitalista, e - no futuro - a comunista. Em cada uma destas fases houve um período inicial no qual os proprietários dos recursos fundamentais (na época feudal, os proprietários da terra; na época capitalista, os proprietários do capital) foram agentes autênticos de expansão e progresso - desenvolvendo a produção até aos limites estabelecidos pelo estado da tecnologia. Contudo, mais tarde, quando a capacidade produtiva, de um dado sistema entra em contradição com os interesses dos proprietários, tornam-se agentes retrógrados. Esta contradição crescente entre o sistema de produção e as relações de produção não leva os dominadores a desistir facilmente da conservação do poder, do prestígio e da riqueza; resistirão à tentativa de os substituírem e têm de ser afastados pela violência revolucionária.
Para Marx, a relação entre o poder económico e o poder político era clara: os capitalistas não eram simplesmente uma classe proprietária, eram também uma classe dominante. O seu controle absoluto sobre o tipo fundamental da propriedade (o capital) era a base de controle da vida política da sociedade, quer existisse democracia parlamentar quer não.
Na medida em que o desenvolvimento tecnológico conduz àintensificação da concorrência, aqueles que detêm mais capital tendem a subir na hierarquia social. Como resultado, a burguesia diminui em número, e as classes intermédias - a pequena burguesia (isto é, os proprietários de pequenas fábricas e os pequenos comerciantes, retalhistas, etc.) e os membros de profissões liberais - apresentam uma mobilidade descendente, que os conduz tendencialmente à proletarização. A mesma espiral de concorrência aumenta o número e a miséria dos membros da classe operária. As diferenças de especialização entre as diferentes categorias de operários de que um sistema industrial desenvolvido necessita também diminuem; este processo leva a que um número cada vez maior de pessoas comece a perceber que existem interesses que lhes são comuns e a ser arrastado para a luta de classes. Descobrem também que não podem fazer progressos efectivos recorrendo a acções pessoais e isoladas. A compreensão do que é necessário fazer e da organização apropriada começam a aparecer, definindo uma teoria socialista "científica" e constituindo as organizações através das quais a luta de classes viria a ser levada às suas consequências. Portanto, Marx não era um simples determinista. No entanto, isso não significa que não haja elementos de determinismo no marxismo. Engels, procurou explicar, pelo menos em parte, o fracasso das revoluções de 1848, insistindo que processos económicos inexoráveis produziriam, em última análise, a queda do capitalismo, apesar daqueles reveses temporários. Ao mesmo tempo, Marx e Engels também responderam a este fracasso salientando a necessidade de organização e de direcção: a revolução não "aconteceria", teria sim de ser organizada cuidadosamente e seria necessário fazê-la acontecer quando as circunstâncias fossem propícias. O prof. Daniel de Sousa diz na página 34 da sua Introdução à Sociologia: "Marx (1818-1883) e Engels (1820-1895) desenvolvem o seu pensamento social, que tomou o nome de marxismo, não só a partir da sua análise do Iluminismo, principalmente do Enciclopedismo francês e dos acontecimentos da Revolução Francesa, mas sobretudo como crítica à filosofia alemã encabeçada por Engels, à economia política inglesa e ao socialismo utópico de França. Tal pensamento é essencial e deliberadamente revolucionário, mas a sua arma crítica necessitou penetrar tão profundamente e pormenorizadamente na natureza das coisas e no significado do homem que daí resultou uma teoria todo-inclusiva de orientação científica e filosófica que a partir de então passou a rodar àsua volta, quer para segui-la, quer para rejeitá-la, toda e qualquer manifestação de conhecimento humano". Comecei este trabalho com uma citação do prof. Daniel de Sousa e acabo-o com outra citação, acerca da importância do pensamento marxista para o estudo do pensamento social. Efectivamente a concepção marxista do social é uma teoria científica importante e deu um grande impulso para a constituição da ciência do social daí se justificando plenamente este trabalho.

O SOCIAL E A ESTRUTURA IDEOLÓGICA NO PENSAMENTO DE MARX E ENGELS.

A teoria marxista defende que em toda a sociedade existem três níveis: económico, jurídico-político e ideológico. Estes níveis articulam-se entre si de um modo complexo, sendo o económico o determinante em última instância. Se empregarmos a metáfora arquitectónica de Marx e Engels (o edifício como um alicerce ou infraestrutura e uma superestrutura que se constrói sobre esse alicerce), diremos que a ideologia pertence àsuperestrutura. Mas a ideologia não é apenas uma instância da superestrutura, desliza também pelas outras pontas do edifício social, é como o cimento que assegura a coesão do edifício. A ideologia firma os indivíduos nos seus papeis, nas suas funções e nas suas relações sociais.
A ideologia impregna todas as actividades do homem, incluindo a prática económica e política. Está presente no modo como ele encara as obrigações da produção, na ideia que fazem os trabalhadores do mecanismo da produção. Revela-se nas atitudes e nos juízos políticos, no cinismo, na honestidade, na resignação e na rebelião. Governa os comportamentos familiares dos indivíduos e as suas relações com os outros homens e com a natureza. Está presente nos seus juízos acerca do "sentido da vida", etc.
A ideologia está presente a tal ponto em todos os actos e gestos dos indivíduos que chega a ser indiscenível da sua "experiência vivida", pelo que toda a análise imediata do "vivido" está profundamente marcada pela acção da ideologia.
Quando pensamos estar perante uma percepção obscura e desnudada da realidade ou uma prática pura, o que acontece, na verdade, é que estamos frente a uma percepção ou a uma prática "impuras", marcadas pelas estruturas invisíveis da ideologia. Como não apreendemos a sua acção, tomamos a percepção das coisas e do mundo como percepções das "coisas em si", sem nos apercebermos de que também esta percepção sofre a acção deformadora da ideologia.
O nível ideológico é, portanto, uma realidade objectiva indispensável à existência de qualquer sociedade, mesmo da sociedade comunista.
O que constitui este nível? Incluem-se nele dois tipos de sistemas: os sistemas de ideias - representações sociais (ideologias em sentido restrito) e os sistemas de atitudes -comportamentos sociais (costumes).
Os sistemas de ideias - representações sociais abrangem as ideias políticas, morais, religiosas, estéticas e filosóficas dos homens de uma dada sociedade. Estas ideias surgem sob a forma de representações diversas do mundo e do papel do homem dentro dele. As ideologias não são representações objectivas, científicas do mundo, mas representações repletas de elementos imaginários; mais do que descrever uma realidade, exprimem desejos, esperanças, nostalgias. As ideologias podem conter elementos de conhecimento, mas nelas predominam os elementos que têm uma função de adaptação à realidade. O homem vive as suas relações com o mundo dentro de uma ideologia. É ela que lhe adequa a consciência, atitudes e condutas às tarefas e condições próprias da existência. Por exemplo: a ideologia religiosa que exalta o sofrimento e a morte fornece aos explorados um tipo de representações que lhes permita suportar melhor as suas condições de existência.
Os sistemas de atitudes - comportamentos são constituídos pelo conjunto de hábitos, costumes e tendências para reagir de uma determinada maneira. É mais fácil uma pessoa modificar a sua forma de representar o mundo, ou seja, a sua ideologia em sentido restrito, do que mudar as suas formas habituais de viver e resolver os problemas vitais. É por isso que entre as ideologias em sentido restrito e os sistemas de atitudes - comportamentos nem sempre há uma relação de identidade. As relações dialécticas que se estabelecem entre ambos podem ir desde a identidade total ou parcial até à contradição. É importante considerar estes sistemas de atitudes - comportamentos, porque através deles se exprimem determinadas tendências ideológicas. Assim, por exemplo, certos costumes, certos "hábitos de trabalho", certo "estilo de direcção e mando", podem ser contrários à ideologia do proletariado, mesmo quando se revelem em militantes ou dirigentes socialistas. Certos hábitos de trabalho e de mando, quando se desenvolvem, podem tornar-se signos de distinção social, convertendo-se em tomadas de posição (conscientes ou não) na luta de classes ideológicas. O comportamento tecnocrático ou burocrático de alguns dirigentes marxistas é um sintoma da penetração da ideologia burguesa nas fileiras da classe operária.
Vimos que tanto numa sociedade sem classes como numa sociedade de classes a ideologia tem como função assegurar uma determinada relação dos homens entre si e com as suas condições de existência, adaptar os indivíduos às tarefas fixadas pela sociedade. Numa sociedade de classes, esta função é dominada pelo modo como os homens estão divididos em classes. O papel da ideologia consiste em assegurar a coesão dos homens na estrutura geral da exploração de classe: assegurar o domínio de uma classe sobre as outras, fazendo com que os explorados aceitem as suas próprias condições de exploração, como algo fundado na "vontade de Deus", na "natureza" ou no "dever moral", etc.
Mas a ideologia não é uma "mentira piedosa" inventada pelos exploradores para enganar os explorados; ela serve também aos indivíduos da classe dominante para legitimar enquanto tais, fazendo passar por desejada por "Deus", "fixada pela natureza" ou pelo "dever moral" o domínio que exercem sobre os explorados. Serve de laço de coesão social, identifica-os como membros de uma mesma classe, a classe dos exploradores. A "mentira piedosa" da ideologia tem, assim, um duplo papel: exerce-se sobre a consciência dos explorados, para que aceitem como natural a sua condição de explorados; e, sobre os membros da classe dominante, para legitimar a exploração e o domínio.
As ideologias, como todas as realidades sociais, só são inteligíveis através da sua estrutura. Da ideologia fazem parte representações, imagens, sinais, etc., mas não são estes elementos considerados isoladamente que constituem a ideologia. Éo seu sistema, o modo como se combinam, que lhes dá sentido; é a estrutura que determina o seu significado e a sua função. Porque é determinada pela sua estrutura, a ideologia subsiste como uma realidade para lá das vivências subjectivas deste ou daquele indivíduo. A ideologia não se confunde com as formas individuais em que é vivida, podendo por isso ser objecto de um estudo objectivo. É por isso que podemos falar da natureza e das funções da ideologia e estudá-la.
O estudo objectivo da ideologia revela-nos que, apesar de ser uma realidade difusa em todo o corpo social, ela pode ser dividida em regiões particulares, centradas sobre diferentes temas. É assim que distinguimos regiões relativamente autónomas no seio do nível ideológico: ideologia moral, religiosa, jurídica, política, estética, filosófica, etc.
Nem todas estas regiões existiram sempre na história. Prevê-se que algumas desaparecerão ou se confundirão com outras no decurso da história do socialismo e do comunismo. Consoante as sociedades, as classes sociais que nela existem, assim esta ou aquela região ideológica domina as outras. Por exemplo: Marx e Engels indicam-nos que a ideologia religiosa exerceu uma influência dominante em todos os movimentos de rebelião camponesa do século XIV ao século XVIII, e até em certas formas primitivas do movimento operário. A mesma ideologia religiosa parece desempenhar um papel dominante na história da liberdade de algumas raças oprimidas, como a dos negros nos Estados Unidos.
Em cada uma das regiões anteriormente assinaladas a ideologia pode existir sob duas formas:
1. Forma mais ou menos difusa, mais ou menos inconsciente, ou ideologias práticas;
2. Forma mais ou menos consciente, reflexiva, sistematizada, ou ideologias teóricas.
Sabemos que podem existir ideologias religiosas com regras, rituais, etc., sem que possuam uma teologia sistemática; o aparecimento de uma teologia representa um maior grau de sistematização teórica da ideologia religiosa. O mesmo acontece com as outras regiões da ideologia. Elas podem existir sob uma forma não teorizada, não sistemática, sob a forma de costumes, tendências, gestos, etc. ... ou, pelo contrário, sob uma forma sistematizada e reflexiva, como "teoria" moral, "teoria" política, etc. A forma superior de teorização da ideologia é a filosofia, no sentido tradicional do termo. Convém esclarecer que estas "ideologias teóricas" podem incluir elementos de tipo científico, mas porque estes elementos estão integrados numa estrutura de tipo ideológico, permitem apenas um conhecimento parcial, deformado ou limitado pela situação que esses elementos ocupam na estrutura.
Não existem apenas regiões ideológicas, existem também diferentes tendências ideológicas.
Ao afirmar que "as ideias dominantes são as ideias da classe dominante", Marx abria-nos o caminho para o estudo das diversas tendências ideológicas. Assim como há classes dominantes e classes dominadas, também as tendências ideológicas são dominantes, ou dominadas.
Portanto, no interior do nível ideológico em geral, podemos registar diferentes tendências ideológicas que exprimem as "representações" das diferentes classes sociais: ideologia burguesa, pequeno-burguesa, proletária.
Mas não devemos esquecer que nas sociedades capitalistas "as ideologias pequeno-burguesas e proletárias são ideologias subordinadas, e que sempre triunfam sobre elas, mesmo nos protestos dos explorados, as ideias da classe dominante". Esta verdade científica é de importância primordial para compreender a história do movimento operário e a prática dos comunistas. Que quer dizer Marx quando afirma que a ideologia da classe burguesa domina as outras ideologias e em particular, a ideologia proletária? Quer dizer que o protesto operário contra a exploração se processa dentro da estrutura do sistema e, em grande medida, dentro das próprias representações e noções de referência da ideologia dominante burguesa. Por exemplo: a luta operária centrada na obtenção de maior poder de compra. A pressão da ideologia burguesa é de tal ordem que a classe operária não pode, por si só, libertar-se radicalmente dessa ideologia. Mesmo ao exprimir os seus protestos e as suas esperanças utiliza elementos da ideologia burguesa, continuando a estar dela prisioneira, aprisionada na sua estrutura dominante. Para que a ideologia operária expontânea se transforme ao ponto de se libertar da ideologia burguesa, é necessário que receba do exterior o concurso da ciência, transformando-se sob a influência deste elemento novo, radicalmente distinto da ideologia.
Vimos que o nível ideológico é constituído pelo conjunto de representações e comportamentos sociais. Para o marxismo, o fio condutor que explica estas ideias e comportamentos é a forma como os homens produzem os bens materiais, quer dizer, a estrutura económica da sociedade. Não são as ideias que ditam o comportamento dos homens, mas a forma como estes participam na produção de bens materiais que determina os seus pensamentos e acções.
Mas afirmar que a economia determina as ideias dos homens implicará reduzir o nível ideológico a um simples reflexo do nível económico? O marxismo não defende que o ideológico se reduz simplesmente ao económico. Pelo contrário, afirma que o nível ideológico tem um conteúdo próprio e leis próprias de funcionamento e desenvolvimento. Como dissemos acima, este nível é constituído por diversas tendências ideológicas (burguesa, pequeno-burguesa, proletária, etc.), em que uma delas domina as outras e determina, em certa medida, as suas formas de existência. Por outro lado, a região dominante (religiosa, moral, filosófica, etc.) não é determinada directamente pela economia, mas pelas características próprias da estrutura ideológica de uma dada sociedade. Conforme as tradições religiosas ou laicas de uma sociedade, assim a ideologia dominante burguesa se manifestará através de expressões religiosas, morais ou filosóficas. A classe dominante sabe sempre utilizar a linguagem que lhe permite uma maior comunicação com as classes dominadas, conferindo assim um conteúdo de classe à matéria ideológica que lhe oferece a tradição, os hábitos e os costumes dessa sociedade.
O nível ideológico não é um simples reflexo do nível económico, mas antes uma realidade que possui uma estrutura própria e as suas próprias leis de funcionamento e desenvolvimento (matéria ideológica preexistente, tendência dominante e sua forma de actuação sobre as tendências subordinadas, etc.). A determinação económica actua sobre esta estrutura no seu conjunto. Temos assim que o produto ideológico éo resultado de dois tipos de determinações: uma que é inerente àprópria estrutura ideológica e outra que lhe é exterior (jurídico-política e económica). A determinação por parte da economia não é directa, mecânica, mas complexa, estrutural.
Vejamos o que diz Engels a este respeito numa carta dirigida a Conrad Schmidt, de 27 de Outubro de 1890:
"No que se refere às regiões ideológicas ... a religião, a filosofia, etc., são compostas de um resíduo que vem da pré-história e que o período histórico encontrou diante de si e aproveitou".
Quer dizer, cada novo período histórico (marcado por uma nova determinação económica) depara com um material deixado pelo período histórico anterior e é sobre esse material que vai actuar a nova determinação económica.
Mas não se trata apenas de material ideológico, trata-se também, sobretudo no caso de ideologias que vieram a adquirir um grau elevado de sistematização, de todo um "aparelho" que permite desenvolver esse material: bibliotecas, ficheiros, trabalhos de investigação, estrutura educacional, etc. A pobreza ou a riqueza filosófica de um país não dependem directamente da riqueza ou da pobreza económica, mas da pobreza ou riqueza do material e do aparelho filosófico deixado pelo período anterior.
Engels acrescenta, na carta já citada:
"A economia nada cria directamente por si própria, limita-se a determinar o tipo de modificações e de desenvolvimento do material intelectual existente; mais ainda, muitas vezes "faz" isto indirectamente, pois são os reflexos políticos, jurídicos e morais, que exercem uma acção mais directa sobre a filosofia".
Se insistimos na autonomia relativa da estrutura ideológica relativamente à estrutura económica, não é pelo prazer de dar precisões teóricas, mas porque o esquecimento deste facto tem graves implicações políticas.
Muitos críticos do marxismo pretendem negar a sua validade afirmando que Marx se enganou no que toca à classe operária: "à medida que o capitalismo se foi desenvolvendo, a classe operária - em vez de crescer e amadurecer em termos de consciência de classe - foi-se aburguesando e adaptando cada vez mais ao sistema". Se o marxismo sustentasse que a consciência de classe ou a ideologia são um simples reflexo das condições económicas, poderia, sem dúvida, afirmar-se que Marx se tinha enganado. Mas o marxismo defende uma coisa muito diferente: as condições económicas criam as condições materiais objectivas (concentrações de grandes massas de trabalhadores nos centros urbanos; divisão técnica e organização do trabalho dentro das fábricas, o que cria entre os trabalhadores hábitos de cooperação e disciplina; mobilidade territorial da mão-de-obra, o que lhes abriu novos horizontes, etc.) que servem de base à tomada de consciência de classe do proletariado. Mas estas condições não criam nada directamente. Para que o proletariado descubra os seus verdadeiros interesses de classe, para que adquira uma consciência de classe proletária, é necessária a intervenção de factores extra-económicos; é necessário por a teoria marxista nas mãos do proletariado, único instrumento capaz de libertar a tendência ideológica proletária das deformações reformistas e economicistas, produtos da ideologia burguesa dominante.

domingo, novembro 27, 2005

Companheiros e Amigos

Em primeiro lugar queria dar as boas vindas a todos. Gostaria de destacar os seguintes grupos e associações:

Biblioteca dos Operários
CEL e A Batalha
CCL de Almada
Jornal Campana de Vigo
Livraria Ler devagar
Crise Luxuosa
Distribuidora Revolta
Cruz Negra
Revista Utopia
Mandrágora
Os Vegan
Animal de Lisboa

e também aos agentes da autoridade que tanto contestamos sem esquecer naturalmente esses grandes amigos da democracia burguesa os serviços secretos, os do SIS.
Em boa hora um grupo de libertários da grande Lisboa e margem sul tomou a iniciativa de organizar e promover uma festa em Lisboa, que se tem muitos condimentos que se encontram igualmente noutras festas, pretende destacar os momentos de debate, de reflexão, e uma maneira de pensar, de sentir e de agir não autoritária e onde não se destaque nenhuma figura em particular...
Considerando que estamos na véspera de acontecimentos realmente decisivos no plano do social, logo do político e que devido à influência negativa de meio século de ditadura autoritária que condicionou nestes últimos vinte e cinco anos maneiras de pensar e sentir, os portugueses têm-se mantido um pouco à margem dessas intervenções anti globalizantes. Daí que seja urgente criar uma maior ligação entre os vários Colectivos Libertários de modo a se poder ter uma maior participação na vida social. Esta nossa reunião de três dias poderá ter uma influência importante numa certa concretização desse objectivo...
Para além dos livros e da música, dos jornais e dos fanzines, das exposições e do convívio, das comidas e das bebidas, momento que se pretende importante destes três dias são os debates: o primeiro sobre “O militarismo na sociedade capitalista”. O segundo sobre a “globalização”. O terceiro sobre “formas de organização: autogestão, sindicalismo, cooperativismo”.
Sobre o primeiro debate teremos que ter em conta, entre outros aspectos, notar o ênfase no papel da força e do nacionalismo, a preferência pela unidade, pela abnegação, pela hierarquia e pela ordem, em detrimento do individualismo e da política democrática. Todas as descrições do espirito militar nos países de capitalismo avançado batem nesta mesma tecla.
Em relação ao segundo debate o movimento anti globalização demonstrou a sua capacidade em mobilizar-se. Pela primeira vez fez recuar o FMI e o Banco Mundial inventou novas estratégias, praticou novas formas de acção, encontrou a sua comunicação. Mas também já foram mostrados os seus limites. É preciso passar agora a uma outra etapa: a da composição de alternativas ao ultra liberalismo. As possibilidades de luta não faltam, mas a resistência peca no momento na aparente falta de perspectivas.
É urgente inventar um outro mundo possível.
Mas as alternativas existem...e com isso passamos ao terceiro debate proposto. Formas de organização: autogestão, associação, cooperativismo. E aí, obrigatoriamente teremos que bater à porta da quele que pela primeira fez se auto intitulou de anarquista. Refiro-me naturalmente a Proudhon. Aquele que muito claramente no “Princípio Federativo” disse que “O verdadeiro problema a resolver não é na realidade o problema político, é o problema económico.”

Prefácio Inédito

Reunem-se neste volume todos os trabalhos e artigos, publicados e inéditos, que o autor destas páginas teve oportunidade de escrever nestes últimos dezasseis anos. Há excepção de alguns trabalhos de características mais marcadamente académicas no âmbito da Hermenêutica Filosófica, noventa por cento destes estudos giram directa ou indirectamente na órbita da investigação sistemática ou da influência explicita de um único nome: Pierre-Joseph Proudhon. O contacto directo com a obra do pensador socialista francês, aconteceu pela primeira vez em 1975 e já nessa altura exerceu juntamente com outros nomes do universo anarquista uma poderosa atracção. O estudo sistemático de Proudhon e da sua obra complexa, enciclopédica e multifacetada, deu-se na ponta final da Licenciatura em Filosofia, em 1984. Todos os trabalhos levados a cabo sobre Proudhon foram realizados a partir desta data.
Se alguma vez houvesse a oportunidade da publicação editorial destas investigações, certamente que alguns dos trabalhos "não-proudhonianos" não seriam publicados e seriam relegados para o fundo poeirento de alguma gaveta. Como isso ainda não aconteceu, reunem-se "por atacado" todos os trabalhos, desde o primeiro com data de 1979, até aos últimos já com data de 1995.
As investigações Filosófico-Proudhonianas encontram-se divididas em dez partes. A ordenação obedece ao grau de importância que estes estudos tiveram na evolução mental do autor, tendo em conta o filósofo eleito como constituindo o âmago de toda a investigação que concerne o estudo do homem, do mundo e da vida. Assim, a primeira parte integra os estudos que directamente dizem respeito a Proudhon, naturalmente. A segunda parte, os estudos que se podem integrar na rubrica - Socialismo. A terceira parte, Sociedade. Em seguida Autoritarismo, Estado, Hermenêutica, Música, Crítica e cartas, História e finalmente Filosofia.
Com a reunião em volume de todas estas análises; Proudhon - 12; Socialismo - 17; Sociedade - 13; Autoritarismo - 11; Estado - 10; Hermenêutica - 5; Música - 12; Crítica e Cartas - 6; História - 4; Filosofia - 19; no total de 109 trabalhos e artigos fecha-se naturalmente um ciclo na investigação que o autor tem desenvolvido desde 1984 e a partir de agora inicia-se outro.
Se sentia necessidade de, por vezes, me afastar da investigação central (a obra de Proudhon) para me dedicar a questões ou a acontecimentos históricos que o estudo dessa obra me impelia, (filosofia de Rousseau, materialismo do século XVIII, Revolução Francesa, Comuna de Paris, Guerra Civil Espanhola, Revolução Russa de 1917, Bakunine, Stirner, o conjunto de autores "chamados" de proudhonianos portugueses, toda a temática ligada ao Autoritarismo (personalidade, família, ideologia, militarismo) mais o conjunto de instrumentos postos à disposição do omnipotente Estado (funcionalismo, comunicação social etc, etc) com o fechamento deste ciclo sinto-me finalmente preparado ao fim de 11 anos para me dedicar a cem por cento aos grandes temas proudhonianos. A partir de agora as problemáticas circulares ao pensamento do filósofo de Besançon encontram-se resolvidas e abre-se, de vez, o mundo do filósofo.
A investigação que se inicia demorará, pelo menos a concluir, o dobro do tempo que foi necessário para este primeiro ciclo, mas isso não é importante, desde que se realize. O TEMPO É RELATIVO ÀS DISPONIBILIDADES NELE POSTO

LIBERTÁRIAS - CINEMA

Agora que o filme Libertarias do realizador do país vizinho Vicente Aranda saiu de cartaz, estamos muito mais à vontade para tecer alguns comentários.
Decididamente não se tratava de um documentário sobre as mulheres na revolução espanhola em 1936. Trata-se sim duma obra de ficção, eventualmente com alguns aspectos anacrónicos pelo meio, poderão considerar alguns, embora com uma carga realista e com um respeito histórico que não deverão ter deixado os libertários indiferentes. Filme pujante do ponto de vista cinematográfico, com uma grande dose de humor, apesar do cenário de guerra civil.
Do meu ponto de vista, o único grande senão que o filme levanta, é quando no texto do início e que serve de introdução e de enquadramento a toda a narrativa se conclui dizendo que a revolução anarquista não triunfou porque era uma revolução utópica e como tal impossível. Do ponto de vista teórico estamos naturalmente, em total desacordo com estas considerações. Do ponto de vista prático o filme não explica nem justifica esta posição, pois os limites históricos desta narrativa cinematográfica terminam ainda durante o ano de 36.
Exercendo uma reflexão crítica contínua também nos poderíamos interrogar do “como” é que estes actores consagrados, quer pelas suas capacidades interpretativas ou por pertencerem ao mundo vip como agora repetidamente se diz numa linguagem TVpimbaburguesa puderam participar num filme com estas características.
Finalizando, a importância histórica deste filme tem mais a ver com o futuro do que com o estudo retrospectivo do passado. Tem mais a ver com o pensar, o mobilizar e o catapultar dos libertários no sentido de se organizarem numa estrutura única mas plural, em vez de continuarem a agir intrincheirados em capelinhas de costas mais ou menos viradas, uns contra os outros.

sexta-feira, novembro 25, 2005

Porque é importante saber

Ao fim de cinco anos (6-11-2000) e a caminho das duzentas mil visitas o site anarquista de tendência proudhoniana www.franciscotrindade.com acabou mesmo de fechar!
Na sequência da anterior informação prestada com o título “Para quem quiser Saber” o que era previsível acabou mesmo por acontecer!
No dia 12 de Novembro e no texto que inaugurou o blog http://www.franciscotrindade.blogspot.com/ explicava objectivamente o que tinha acontecido...
“O que aconteceu foi o seguinte: Quando foi feito o site www.franciscotrindade.com por decisão do amigo e webmaster José Carlos ficou alojado na KPNQWEST Portugal porque na altura (ano de 2000) era uma empresa que dava garantias de qualidade em termos de permanência do serviço. Em cinco anos muito se alterou no panorama internet mas a verdade é que na altura o que eu queria era alguém que alojando o site não tivesse problemas técnicos de modo que o site com alguma segurança estivesse em permanência "no ar".
Há um ano e pouco a KPNQWEST Portugal foi comprada pela NOVIS (http://www.novis.pt/) e os clientes duma passaram para a mão da outra. Como o preço permaneceu inalterável e o serviço se manteve achei por bem continuar no mesmo sítio.
Com o passar do tempo apercebi-me que os preços de alojamento de sites foram baixando significativamente. A partir de certo tempo e como o valor do alojamento do site permanecia inalterado começamos a procurar alternativas de alojamento. Quando as encontramos começaram os problemas com a Novis. Durante um mês procuramos obter as passwords e os registars que nos desse a possibilidade de direccionar o site para outro servidor. A Novis nunca disse que não o faria mas foi protelando esse fornecimento. A Novis sabe que não pode dizer que não, tendo em conta que o owner do domínio http://www.franciscotrindade.com/ sou eu e que está pago até Outubro de 2006 mas tem a possibilidade de não fornecer as passwords se for essa a sua vontade. E é essa a sua forte disposição. Daí que por imperativo ético não posso continuar a estar vinculado a uma empresa que me tenta sacanear e que me quer obrigar a continuar a ser seu cliente para que o site continue no ar. Daí que tenha quebrado o contrato com a Novis no dia 31 de Outubro e portanto a qualquer momento o site pode ficar em baixo.”
E foi isso mesmo que aconteceu!
O importante é partir para outra e não repetir a mesma situação para que algo de semelhante não volte a acontecer.
Também Proudhon nos anos 40, que foram os anos de grande actividade jornalística criou o jornal "O Representante do Povo" que foi substituído pelo "O Povo" e finalmente quando este também teve que fechar pelo "A Voz do Povo" até que foi preso... Estou ainda longe dessa fase, eh eh eh ...
Por isso o que os leitores encontram agora não é um site mas sim um blog, o http://www.franciscotrindade.blogspot.com/.
O blog permite, apesar de tudo, uma outra liberdade em termos políticos e económicos, mas limita mais em termos de apresentação...Como diria o outro não se pode ter tudo...
O blog já contém todos os textos que estavam no site à data do seu fecho, à excepção da poesia e dos materiais escolares. Ficam a perder os estudantes e os amantes da poesia.
Contactou-se o Instituto do Consumidor que não funciona a não ser a recepção com o respectivo segurança, que se limita a proteger o que não funciona...
Contactou-se a Deco sem sucesso mas como instituto privado sem qualquer poder deliberatório, aliás como o próprio Instituto do Consumidor (diga-se de passagem que as instituições do capitalismo não são de fiar...) nos encontramos sempre, mas mesmo sempre, nas boas graças e na boa vontade do poder dominante que se encontra do lado da empresa, a asquerosa, a dissimulada, a falsa, a Novis!
O que podemos assegurar é que com site, blog ou o que quer que seja, vamos continuar!...
“I´ll be back!”? Não, já cá estamos!

quarta-feira, novembro 23, 2005

O GRAU ZERO DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA

Políticos são acusados em justiça pelos crimes de corrupção, peculato e abuso de poder, cometidos no exercício das suas funções. Uma parte do povo (que o povo não é uniforme, note-se) não quer saber desses detalhes. O povo adora esses políticos de tipo messiânico, “ou eu ou o caos” e portanto os políticos nunca são culpados façam o que fizeram e os que são serão protegidos pelos outros…
A evidência salta aos olhos: o país está a arder porque alguém quer que ele arda. Ou melhor, porque muita gente quer que ele arda. Como se se tratasse de uma verdadeira indústria dos incêndios em Portugal. Há muita gente a beneficiar, directa ou indirectamente, da terra queimada. Oficialmente, continua a correr a versão de que não há motivações económicas para a maioria destes incêndios. Os jornalistas têm pelos políticos uma estima particular. Misturam-se com eles, comem com eles, são por isso condescendentes com eles. Porque por detrás dum político apanhado com a boca no trombone há sempre uma justificação metafísica: o sistema.
Por isso os políticos parecem gozar da indulgência de todos. De todos? Sim, pelo menos dos que podem alterar as coisas. Quando finalmente é emitido um mandato judicial contra o dito cujo, consegue sempre tornear com muita perspicácia, (ou será dos advogados pagos a peso de ouro?) a lei que na maior parte das vezes é confusa ou não o sendo possibilita essa confusão (de outro modo, de que viveriam os autores dos "pareceres" jurídicos, que são, muitas vezes também, os autores das leis?) porque a lei não é tendencialmente clara e assim os políticos apanhados em suposta falta (judicial, política ou outra), (há algum que não o tenha sido?) continuam a usufruir das regalias e privilégios que eles próprios estabeleceram para si próprio e para os seus. E isso não são pormenores, nem apenas uma gota de água no oceano dos nossos impostos.
O essencial é que o povo e os seus supostos defensores ainda vão concordando com eles de que são fundamentais (mesmo que a justiça pense o contrário…mas qual justiça?)
É claro que podemos sempre apresentar as coisas de outra maneira: se alguém que exerce funções públicas é acusado por crimes patrimoniais no exercício das suas funções, deve interromper essas funções e explicar-se em tribunal, ou deve fugir e proclamar-se mártir da justiça? O povo, claro, acha que os políticos devem ser responsabilizados, sobretudo os "corruptos". Mas os corruptos são sempre os outros. Os que não foram objecto do meu voto. “O meu político não é igual aos outros políticos.”
O problema resolve-se quando o povo, por uma razão ou outra, desconfiar que eles não são cidadãos recomendáveis para funções públicas.
Doutro modo limitam-se a sucederem uns aos outros nos lugares de poder ad eternum. Veja-se o caso das presidenciais e aquele grupinho de dinossauros.
No próximo mês o país vai-se confrontar com o sintoma mais deprimente da degradação desta nossa democracia. E não adianta fingir que o político A ou o político B são maus exemplos que não representam o todo. Simplesmente, não é verdade. Basta olhar para muitas das caras de candidatos que enxameiam o país, de norte a sul: nem é preciso chamar o Ministério Público, (para quê?) está lá tudo escrito, nas caras deles. Portugal inteiro está cheio de casos semelhantes e, pior do que isso, todos sentimos que o sentimento geral do país é a complacência, quando não a veneração perante eles. Os políticos são uma fauna indescritível de gente que de relevante tem apenas a extrema saloiice a que chamam glamour e uma comum e absoluta inutilidade social, profissional e cívica.
São os elementos rascas de uma sociedade rasca chamada de democrática. É uma profunda degenerescência de valores, de referências e de símbolos, que pode parecer inofensiva, mas que vai corroendo aos poucos esta democracia. Aconteceu o mesmo na I República.
A arrogância, a chantagem e o silêncio conveniente perante questões de gravidade extrema chegam e sobram para ganhar eleições. E o pior é vai chegando. Até um dia.
A democracia representativa é um sistema no qual as pessoas são espectadores e não actores. A intervalo regulares, têm o direito de colocar um boletim na urna, de escolher alguém dentro da classe dos chefes para os dirigir. Depois, espera-se que voltem para casa e tratem dos seus assuntos, consumam, vejam televisão, cozinhem e, acima de tudo, não incomodem. É isso a democracia em que vivemos.
Vamos responder massivamente com a greve eleitoral, não pondo sequer os pés nos locais de voto, mostrando assim, que não pactuamos com este sistema injusto e caduco.
O homem que solicita os meus sufrágios é um homem desonesto, porque em troca da situação e da fortuna a que o conduzo, promete-me uma série de coisas que não me vai dar e que além disso, nem sequer estaria em seu poder dá-las. O homem que elevo não representa nem a minha miséria, nem as minhas aspirações, nem nada de mim; não representa senão as suas próprias paixões e os seus próprios interesses, que são contrários aos meus. Não penso, nem para me reconfortar nem para me dar esperanças que depressa seriam desiludidas, que o deplorável espectáculo a que assistimos hoje é particular de uma época ou de um regime e que isso passará. Neste sentido todas as épocas se equivalem, tal como todos os regimes, ou seja, não valem nada.
Vê-se que o sufrágio universal é um meio poderoso para adormecer a actividade humana. Nada tem em comum com a soberania popular, com o direito de alguém ser em qualquer momento tão soberano como outro indiví­duo qualquer. Nada tem em comum com a igualdade.
Impor apreciações pela força, é tiranizar. A lei é a opressão suprema, a opressão legal, o direito do mais forte.
Os direitos de um homem não podem depender da apreciação mais ou menos desinteressada de outros homens. Esses direitos existem ou não existem. Se existem, têm que ser exercidos.
Os homens reconhecem à unanimidade que a sociedade actual tem demasiados erros.
Como é que esta sociedade, reconhecida defeituosa por todos, con­segue durar?
Ela dura: Porque há pessoas, as privilegiadas, para quem ela é tolerável; Porque os não privilegiados, para quem ela não é tolerável, se resignam, porque não se revoltam.
Com efeito, todas as vezes que os homens são chamados a votar, esse apelo pode ser considerado como o pedido de uma assinatura para o prolongamento do pretenso contrato social.
O primeiro significado da abstenção eleitoral é o seguin­te – Não quero o regime que me impõem e que querem continuar a impor-me. Daqui decorre que todo o eleitor é um con­servador, porquanto o resultado do seu voto é contribuir para fazer funcio­nar o sistema em vigor.
Como o voto conduz à autoridade e ao despotismo convém lutar contra o voto e não participar nele.
Por tudo isto não votes ou vai para casa e faz greve!

COMO DIMINUIR O DÉFICE DO ESTADO SEM AUMENTAR IMPOSTOS

O governo propõe-se como todos sabemos mas que convém ter sempre presente reduzir o défice orçamental em 4 pontos percentuais, de 6,8% para apenas 2,8%. É verdade que entretanto o défice já não se situa nos 6,83% do PIB mas baixou para 6,72% devido às contas mal feitas da comissão Constâncio…mas para aquilo que quero demonstrar, vamos falar sempre em quatro pontos percentuais que é o que está em causa e que levou o governo a trilhar o caminho mais fácil, ou seja, o aumento dos impostos indirectos que como se sabe são os impostos mais injustos.
Falamos em quatro pontos percentuais do défice que o governo quer baixar no prazo da legislatura, ou seja quatro anos de 2005 até 2009. Sabemos que um por cento do défice corresponde a 1400 milhões de euros. Logo quatro por cento corresponde a 4 vezes 1400 milhões, ou seja, 5.600 milhões de euros. É isto que está em causa e é este número que a partir de agora vamos ter sempre presente na análise que se segue.
O nosso objectivo não é dar receitas, até porque ninguém nos encomendou nenhuma, mas apontar certas realidades visíveis para quem esteja numa posição liberta de grupos do que quer que seja. Vejamos então o que a realidade nos aponta.
Na análise da situação podemos ir por dois caminhos diferentes mas não necessariamente opostos. Trata-se do mesmo país que tem um défice de 5.600 milhões de euros em 2005 e que no entanto calcula que a fraude e as fugas fiscais se situam na ordem dos 11,4 mil milhões de euros…por ano. O problema do défice ficava logo resolvido. É claro que a questão não é assim tão fácil, até porque não é um problema de dinheiro mas é mais de poder. Poder que gere dinheiro…
Nos tribunais existem 3 milhões de processos por resolver, devido a evasão e fraude fiscais que correspondem a 15 mil milhões de euros. Na segurança social há uma dívida por cobrar de cerca de 2,4 mil milhões de euros. As empresas cotadas na bolsa, que usufruem de inúmeros benefícios fiscais, em 2004 aumentaram os seus lucros em 47%. Os bancos que duplicaram os lucros em suposta época recessiva só pagam 15% de imposto enquanto que as outras empresas pagam 25%.
Vejamos agora um outro caminho pelo qual podemos também ir. Segundo o Orçamento Geral do Estado se olharmos para as despesas dos serviços integrados por classificação funcional (basta ir à página da direcção geral do orçamento em http://www.dgo.pt/oe/2005/Aprovado/Mapas/map02-2005.pdf podemos chegar a conclusões muito interessantes. As funções gerais de soberania contando com os serviços gerais da administração pública (os políticos e a burocracia) com a defesa nacional (as forças armadas) e a segurança e ordem públicas (as diversas polícias) vão gastar, já estão a gastar 6 856 480 840 euros em 2005 (mais de 6.800 milhões de euros) mais do que todo o défice…
Só para se ter uma ideia da enormidade deste valor as funções económicas do Estado incluindo a agricultura e a pecuária, a silvicultura a caça e a pesca, a indústria e energia, os transportes e as comunicações, o comércio e o turismo, para além de todas as outras funções económicas envolvem um montante da ordem dos 2.100 milhões de euros, mais precisamente 2 105 449 822 euros em 2005 que corresponde a menos de um terço da manutenção da máquina do Estado. Estes valores devem-nos levar a reflectir…Aqui sim é que podemos falar de “monstro”…
Segundo o Jornal de Negócios existem em Portugal 88 683 cidadãos fardados, dados de 2004, que custam às finanças públicas para cima de 4.000 milhões de euros distribuídos da seguinte maneira:
Exército: 8028 do quadro permanente mais 8961 em regime de voluntariado ou contratados.
Marinha: 7810 do quadro permanente mais 2099 em regime de voluntariado ou contratados.
Força Aérea: 3534 do quadro permanente mais 3234 em regime de voluntariado ou contratados.
Polícia Marítima: 1062
PSP: 27633
GNR: 26322
Total de efectivos: 88683 cidadãos. Pergunta-se: Para quê tanta gente fardada? Para quê quase 17000 no exército, 10000 na marinha e 8000 na força aérea. Metade não seria mais do que suficiente para os generais e os almirantes “brincarem” às guerras?
Mas olhando para os mapas respeitantes às diversas despesas do orçamento do estado há uma que sobressai imediatamente pela sua dimensão e pela sua exorbitância que é a respeitante às operações da dívida pública que totaliza mais de 45.000 milhões de euros.
Tendo em conta que a totalidade dos dinheiros que o orçamento monopoliza é um pouco mais de 83.000 milhões de euros, repare-se que o país tem que se “organizar” com 38.000 milhões de euros que corresponde a 45,7% do total. Dito a partir dum exemplo mais simples vamos imaginar que o vencimento dum trabalhador por conta de outrem é de 830 euros mas que quando ele recebe o ordenado no final do mês tem que entregar imediatamente 450 euros devido a uma dívida que contraiu ao banco, de modo que na prática só tem 380 euros para se governar durante todo o mês. Temos que concordar que este trabalhador tem algumas dificuldades de gestão…assim está o país. Quem é que o governou? Quem é que o tem governado? Tire-se as ilações devidas. É por isso que acho sempre muita piada àqueles que defendem que o caos se instalaria com o fim do Estado pelo menos tal e qual como o conhecemos…
Isto vem a propósito dum texto escrito por um dos ideólogos do neo liberalismo que com o título “A nobre missão dos políticos” defendia no início do mês uma outra opção uma outra opção para o aumento dos impostos e isto na senda de outros ideólogos do mesmo quadrante. Qual a opção? Privatizar! Privatizar todas as empresas que ainda estão nas mãos do Estado. Não sei se estes ideólogos defendem que o Estado deve guardar alguma coisinha para si mas isso não faz parte do argumento principal que é privatizar, privatizar o que o Estado ainda tem no seu controle…
Segundo ele “A democracia moderna emergiu de um processo para limitar o poder do governo, nomeadamente o poder arbitrário de cobrar impostos.”
Esta democracia de que ele fala é a que emergiu no mundo de língua inglesa a partir do século XVII em Inglaterra tendo como contraponto a democracia francesa que teria “apagado” da memória das pessoas esta origem liberal e conservadora da democracia e introduzindo a ideia que ele considera “bizarra” de que um governo grande seria aceitável e mesmo desejável desde que fosse um “governo do povo”. O responsável por essa ideia seria Rousseau que teria produzido várias consequências todas negativas e particularmente uma que seria igualmente ineficaz que era a ideia de que os impostos deveriam ser altos. Daí que a missão dos políticos é de tomar consciência de que o principal mal do país reside no excessivo poder do Estado. E portanto o político deve ter como preocupação fundamental liderar um processo que limite e faça recuar o poder do Estado ou seja o seu próprio poder…Está bem à vista de todos o que aqueles que defendem a via liberal pretendem realmente. Pouco Estado que para eles será melhor Estado porque não será um empecilho às suas actividades económicas…
Repare-se numa certa semelhança entre anarquistas e capitalistas selvagens, desculpem, entre anarquistas e liberais. O ponto de partida da análise política, social e económica tem a ver com o Estado e com as mais amplas limitações que se pretende impor mas com consequências enormes para todo o conjunto da sociedade. O mais das vezes a análise do discurso “tout court” revela-se insuficiente, limitativo e enganador.

P.S. Premonição. Os valores poderão alterar-se o que é perfeitamente normal, os argumentos utilizados quer neste texto quer no anterior intitulado “Saldo Total das Administrações Públicas e Orientação da Política Orçamental em Portugal – Uma Reflexãozita” manter-se-ão válidos até 2009, ou seja, até ao fim desta legislatura, isto é, se ela chegar ao fim…

SALDO TOTAL DAS ADMINISTRAÇÕES PÚBLICAS E ORIENTAÇÃO DA POLÍTICA ORÇAMENTAL EM PORTUGAL - UMA REFLEXÃOZITA

A orientação da política orçamental é medida pela variação do saldo primário ajustado do ciclo em percentagem do PIB, excluindo os efeitos das medidas temporárias. Nessa base facilmente se concluiu pela análise dos dados fornecidos pelas fontes oficiais, ou seja, do Instituto Nacional de Estatística, do Ministério das Finanças e do Banco de Portugal que Portugal (leia-se o Estado Português) desde há muito tempo que vive sempre em défice. Vejamos só os últimos anos: Já em 1991 o défice era de 7,6 do PIB. O estado não morreu por esse facto. Os valores dos anos a seguir são estes: 4,7% para 1992 que sobe rapidamente no ano seguinte para 8,1%, desce ligeiramente para 7,7 em 1994, para 5,5% em 1995, para 4,8% em 1996, 4% no ano seguinte. Em 1998 está nos 3,2%, 2,8% em 1999, para voltar a subir em 2000 para os 3,2% e não os 2,8% que o governo da altura tanto apregoava porque estamos a excluir os efeitos das medidas temporárias que só serve para encapuçar a real situação das contas. Em 2001 sobe de novo para os 4,4%, decresce ligeiramente em 2002 para os 4,1% para em 2003 se situar nos 5,4%. Em 2004 o défice situa-se nos 5,2% do PIB para finalmente este ano se situar nos célebres 6,83% do relatório da comissão Constâncio, uma comissão constituída por sábios e especialistas (adoro estas designações governamentais).
A nossa história da carochinha acaba com a revelação de que esta comissão se enganou, porque não sabe fazer contas, e o défice já não é de 6,83% mas agora miraculosamente (por um passa de magia – Houdini não saberia fazer igual) passou para 6,72%. Até ver. Cá estaremos para ajuizar.
Muitos poderão perguntar como é que é possível com tantos sábios de meia tigela que ganham tantos milhares de euros se enganarem tão redondamente?
Note-se que não é um erro de somenos importância. Trata-se de 0,11 por cento do PIB que corresponde a 151,4 milhões de euros. Quer isto dizer que, contando com este desfasamento, o valor do défice é de 9.401,4 milhões de euros (6,72% do Produto Interno Bruto) e não de 9.552,5 milhões de euros (6,83%), como consta no relatório.
Mas estes não são os únicos especialistas a enganarem-se no que diz respeito a contas.
Na sexta-feira, às dez da noite, dia 25 de Julho de 2005 o Governo entregou na Assembleia da República o Orçamento Rectificativo 2005, tornado necessário porque o que tinha sido elaborado pelo ministro das finanças do governo anterior estava
desfasado da realidade. A questão é que, o orçamento entregue tarde e a más horas, traz erros inadmissíveis, martela receitas e despesas para chegar ao défice de 6,2% e, mais grave, conclui que a despesa do Estado ultrapassa metade do que o país produz (50,2%), ao contrário do que tinha sido prometido e ao que tudo indica, estão a trabalhar de novo os números do documento. Mais um técnico competente e imaculado que faz borrada pois entre os valores aprovados pela Comissão Constâncio, o Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC) e o OR há diferenças acentuadas na composição das receitas e das despesas. Assim, do PEC para o OR aumentam as despesas em 1.570 milhões de euros e as receitas em 1.506 milhões. A receita fiscal fica 499 milhões de euros acima do PEC e 989 milhões acima da estimada pela Comissão Constâncio (que não contabilizava os aumentos de impostos entretanto anunciados). E o Governo espera arrecadar mais 7,1% em impostos, um valor muito superior ao crescimento nominal da economia.
Mas o caso mais grave vem do lado das despesas. O Governo mostra-se desinteressado para travar o seu crescimento. E assim a despesa é superior em 1.570,9 milhões de euros ao PEC e em 1.194,1 milhões aos valores da Comissão Constâncio, crescendo mais de um ponto percentual em relação ao anteriormente previsto em percentagem do PIB. E assim, a despesa das administrações públicas em percentagem do PIB atinge 50,2% contra os 49,1% inscritos no PEC. O que importa assinalar é que este Orçamento Rectificativo, para quem queria acabar com o «monumental embuste» do OE 2005, é, ele próprio, um enorme embuste, e que aparece ferido na sua credibilidade pelos erros técnicos que enferma e pelas promessas políticas que não cumpre. O que é que isto tem a ver com o rigor orçamental até 2008 que é o refrão mais cantado das músicas governamentais?
E o que é que o rigor orçamental e a contenção das despesas do Estado tem a ver com a dança dos superboys? Segundo o Jornal de Negócios (e está certo porque se trata de negócios…) o ministro entre os primeiros, já teria nomeado cerca de mil e cem “especialistas” certamente da coisa pública, desde a tomada de posse…
Só uma pequena nota à parte…o Ministério com mais nomeações foi…foi…o das finanças, pois claro, e desta maneira está a cumprir uma das promessas eleitorais, a dos cento e cinquenta mil empregos durante a legislatura…
Portanto estamos de acordo….rigor orçamental é coisa que não existe. Para além disso o orçamento, neste caso já o rectificativo, aposta mais uma vez na injustiça fiscal e é claro que assim deve ser tendo em conta que vivemos em capitalismo. O que é que estavam à espera?
Assim, em 2002, em cada 100 euros de receitas fiscais arrecadadas pelo Estado 56 euros tiveram como origem impostos indirectos; em 2005, por cada 100 euros de receitas fiscais arrecadadas pelo Estado, 62,3 euros terão como origem impostos indirectos. Como os impostos indirectos são impostos injustos porque quem ganhe muito e quem ganhe pouco tem de pagar o mesmo valor em euros de imposto ao Estado, é evidente que crescendo mais as receitas de impostos indirectos, como acontecerá em 2005, a injustiça fiscal aumentará em Portugal.
Para conseguir reduzir o défice orçamental em 4 pontos percentuais, de 6,8% para apenas 2,8%, ou seja, 5.600 milhões de euros, em 3 anos apenas (2005-2008) o governo pretende: 1 dinamizar a chamada "bolsa de supranumerários" na Administração Pública para onde pretende atirar todos os trabalhadores considerados pelas respectivas chefias "excedentários ou inadequados ao serviço", criando desta forma as condições para o despedimento; 2 alterar o sistema de aposentação dos trabalhadores da Administração Pública que entraram antes de 1 de Setembro de 1993, cujos direitos adquiridos todos os governos anteriores respeitaram, mas que o actual governo pretende não fazê-lo aumentando a idade de reforma em 5 anos e reduzindo o valor da pensão por cada ano de serviço realizado depois de 31.12.2006 em 20%; 3 aumentar a idade de reforma dos trabalhadores por conta de outrem do regime geral da Segurança Social; 4 reduzir as comparticipações nos genéricos e em outros medicamentos entre 5% e 10%, com a justificação de que as farmácias e os laboratórios vão reduzir os preços dos medicamentos em 3%; 5 aumentar o IVA de 19% para 21% e os impostos sobre os combustíveis todos os anos o que determinará o aumento generalizado dos preços; 6 impor aos trabalhadores da Administração Pública o congelamento das progressões nas suas carreiras profissionais assim como aumentos de remunerações inferiores às subidas de preços, o que determinará diminuição do poder de compra dos vencimentos; 7 dar aos patrões privados orientações para que respeitem uma política de "moderação salarial" o que significa que façam o mesmo que o governo pretende impor aos trabalhadores da Administração Pública; 8 reduzir, em termos reais, pelo menos até 2007 o investimento público o que determinará mais retrocesso económico e mais desemprego; 9 continuar a política de privatizações das empresas públicas destruindo assim um importante instrumento de política económica e uma fonte importante de receitas para o Orçamento do Estado.
De acordo com o governo, o objectivo de crescimento económico subordina-se ao objectivo de redução do défice orçamental, passando a ser a diminuição do défice o objectivo central da acção governativa, mesmo sacrificando o desenvolvimento económico e social do País. E a justificação é que "o País depois do inferno terá o paraíso", apesar disso ser falso.
Um jornalista do sistema mais precisamente de uma estação de televisão escreveu um texto com um pacote de medidas dirigidas ao governo de modo a dar-lhe pistas para diminuir o défice.
Se é verdade que algumas são da ordem da comédia e portanto não vou perder tempo a tecer qualquer outro tipo de consideração há no entanto algumas outras que eu próprio defendo desde há muito e que seriam algumas medidas que nunca este ou outro governo tomariam porque constituiria a antítese do que é um governo, do que ele representa, e dos grupos que ele defende, apesar de serem moderadas ao nível das ideias e poderem ser implementadas só dependendo da vontade política.
Vejamos em primeiro lugar questões de ordem conjuntural: Proibir qualquer governo de mudar a sua lei orgânica durante 20 anos. Proibir os ministros de mudar o nome do seu ministério e, assim, não encomendar novo logótipo, papel timbrado, envelopes, cartões e afins. Proibir qualquer ministério ou direcção-geral de mudar de instalações. Proibir as delegações que vão às capitais dos países com quem mantemos relações de se instalarem em hotéis de luxo. Restringir o uso dos Falcon ao mínimo. Não encomendar nenhum estudo de nenhuma espécie a nenhuma consultora durante o tempo que durar o défice. Extinguir todas as comissões de livros brancos, verdes e afins.Extinguir os governos civis todos, vender os edifícios e a tralha respectiva. Reduzir drasticamente o ‘staff’ variável dos ministérios e das câmaras municipais para acabar com as máquinas de emprego partidário. Proibir que os ministérios contratem empresas de comunicação para fazer a assessoria de imprensa ou que o façam através das empresas que tutelam. Não nomear amigos e “malta do partido” para as administrações das empresas estatais.
Vejamos agora questões de ordem estrutural: Vender os submarinos o mais depressa possível.Vender todos os quartéis que existem no centro das cidades, urbanizar 30% e pôr tudo o resto com espaços verdes geridos e pagos pelas construtoras que ficam com os direitos de construção. Obrigar Angola a pagar a dívida já com petro-dólares. Desistir de vez com qualquer linha de TGV. Desistir com o aeroporto da Orta. Não avançar sequer com a remota possibilidade do país candidatar-se aos jogos olímpicos de 2012 ou 2016. Obrigar a sério as SAD dos clubes a pagarem as suas dívidas no espaço temporal dum ano fiscal.
Estas medidas valem sobretudo pela hipótese clara e transparente de que o défice seria em grande parte resolvido e que portanto ao contrário do que nos querem fazer acreditar há outras opções, acrescentaria eu, muitas outras opções mas que o governo não quer sequer ponderar…
Diz-se e com razão que o estado português é despesista. Todo o estado é despesista mas sem dúvida que o estado português abusa desde qualificativo.
Sabem qual é foi a dotação orçamental da presidência da república para o ano de 2005? Esta dotação que cobre os gastos de Sampaio, a sua corte, a manutenção do Palácio de Belém, as viagens e os vestidos de Maria José Ritta é de 13 milhões 325 mil euros. É muito ou é pouco?
Trata-se de uma casa e de uma instituição que é unipessoal embora tenha gente a trabalhar para ele…Quantos são 20, 30, 50? Mas trata-se de mais de 13 milhões de euros! Seria interessante termos uma comparação.
Toda a Monarquia Britânica custa ao erário público do Reino Unido uns módicos 54 milhões de euros e não se trata de uma instituição unipessoal…rainha e príncipes e princesas são mais que muitos e tem 303 funcionários. Está tudo em http://www.royal.gov.uk/files/pdf/Royal%20Public%20Finances%202003-04.pdf
Basta só ir ver e confirmar.
O valor atribuído à presidência da república para 2005, pode considerar-se até espartano quando comparado com as dotações orçamentais dos ministros da república dos Açores e Madeira que é mais de 200 milhões de euros para cada um, ou seja mais de quatro vezes mais que a monarquia inglesa que riqueza e fausto é coisa que não lhe falta… Como é que os ministros da república dos Açores e da Madeira, justificam gastos anuais 4 vezes superiores aos da Rainha de Inglaterra? Aquilo que o Reino Unido gasta com toda a família real, chega apenas para "alimentar" um gabinete do ministro da república, das nossas regiões autónomas, por um mísero trimestre. Porra este país tem muito dinheiro!
Não acreditam? Acham surrealista? Basta ir ver e confirmar!
http://www.dgo.pt/oe/2005/Aprovado/Mapas/map02-2005.pdf
Mais exemplos do despesismo do Estado:
Com as eleições legislativas de 20 de Fevereiro, metade dos 230 deputados não foram eleitos. Os que regressaram às suas anteriores actividades, não saírem tristes ou cabisbaixos. Quando terminam as funções, os deputados e governantes têm o direito, por Lei (lei que foi feita por eles) a um subsídio que dizem de reintegração: um mês de salário (3.449 euros) por cada seis meses de Assembleia ou governo.Desta maneira um deputado que o tenha sido durante um ano recebe dois salários (6.898 euros). Se o tiver sido durante 10 anos, recebe vinte salários (68.980 euros). Feitas as contas e os deputados que saíram, o Erário Público desembolsou mais de 2 milhões e 500 mil euros. No entanto, há ainda aqueles que têm direito a subvenções vitalícias ou pensões de reforma , mesmo que não tenham 65 anos! Estas são atribuídas aos titulares de cargos políticos com mais de 12 anos. A maioria dos outros deputados que não regressaram
estiveram lá somente a última legislatura, isto é, 3 anos, o suficiente para terem recebido cerca de 20.000, euros cada.
Um dos argumentos principais que se utiliza contra aqueles que defendem o fim do Estado seria a desordem daí resultante…Entendem uma desordem maior do que aquela que apresentei nestas páginas com as implicações daí resultantes de sacrifícios e misérias para a grande parte da população? Num próximo texto analisarei o orçamento de estado para 2005 e as sua despesas para desse modo mostrar como é que se poderia reduzir o défice a zero sem necessidade de aumentar impostos.

O BANCO DO POVO OU UMA RESPOSTA SOLIDÁRIA

Tudo começou quando, terminado o doutoramento nos Estados Unidos, Yunus professor de Economia regressou ao Bangladesh, em 1972, após terminada a guerra que levou à independência face ao Paquistão. Em 1974, grande parte do povo morria de fome, que deve ser uma das formas mais cruel de morrer. Com muita vontade de fazer alguma coisa pelo seu povo, este professor após ter feito o retrato da máxima pobreza que ainda hoje subsiste no seu país, pas­sou a explicar como surgiu a ideia de criar uma instituição financeira que apenas concede crédito a quem se encontra abaixo dos limites mínimos da pobreza.
Confrontado com um contexto de miséria extrema e generalizada, este doutor depressa se deu conta que a sua ampla bagagem teórica e académica jamais poderia dar resposta ao problema. E o problema, era o de milhões de pessoas sem quaisquer hipóteses de, independentemente da sua vontade e esforço, obterem os meios para ultrapassar uma pobreza endémica, apenas porque ninguém empresta dinheiro a quem não o tem, como é óbvio. Um problema agravado pela intensa activida­de dos agiotas que, a troco de pequenos empréstimos, empurram as pessoas para uma vida de total dependência mesmo de escravatura.
Quando voltou para leccionar na Universidade local situada bem no coração dessa miséria, viu-se forçado a todos os dias fazer um pequeno gesto para apaziguar a consciência. E o primeiro grande gesto foi procurar identificar as pessoas que, na aldeia contígua ao campus universitário, se encontravam reféns de dívidas.
Num primeiro levantamento, Yunus identificou 42 devedores. Somou os empréstimos contraídos e chegou a um total de 27 dólares. Decidiu emprestar-lhes dinheiro do seu bolso, sem condições ou prazos. Para sua surpresa, foi todo devolvido.
Pensou que acabava ali, mas a felicidade estampada naquelas caras passou a persegui-lo como uma assombração, segundo palavras suas.
O passo seguinte pareceu-lhe óbvio. Dirigiu-se ao gerente do banco e tentou persuadi-lo a conceder pequenos empréstimos às pessoas da aldeia. A resposta, como facilmente se adivinha, foi a de que não se empresta dinheiro a quem não tem garantias para o devolver.
Após três meses de insistentes tentativas, Yunus decidiu oferecer-se como garantia para todos aqueles créditos. Estabeleceram-lhe um tecto máximo de 300 dólares. Contraiu a divida, distribuiu o dinheiro, recolheu os pagamentos e devolveu ao banco.
Com a ajuda dos seus alunos, repetiu o processo, uma e outra vez, sem que por uma só o dinheiro não regressas­se à procedência. Mas provar que o crédito pode ser concedido sem quaisquer garantias que não a confiança mútua mostrou-se insuficiente para levar a banca a assumir o compromisso. O princípio está subvertido, podemos dizer: A partir da palavra crédito, que significa confiança, construiu-se um sistema baseado na desconfiança.
Eis o texto que podemos encontrar no site http://www.grameen-info.org/agrameen/profile.php3?profile=1

As founder of the Grameen Movement, Professor Muhammad Yunus is a revolutionary. His ideas couple capitalism with social responsibility and have changed the face of rural economic and social development forever. Professor Yunus is responsible for many innovative programs benefiting the rural poor. In 1974, he pioneered the idea of Gram Sarker (village government) as a form of local government based on the participation of rural people. This concept proved successful and was adopted by the Bangladeshi government in 1980. In 1978, he received the President's award for Tebhaga Khamar (a system of cooperative three-share farming, which the Bangladeshi government adopted as the Packaged Input Program in 1977).
A Fulbright Scholar at Vanderbilt University, Professor Yunus received his Ph.D. in Economics in 1969. Later that year, he became an assistant professor of Economics at Middle Tennessee State University, before returning to Bangladesh where he joined the Economics Department at Chittagong University. The UN secretary general appointed Professor Yunus to the International Advisory Group for the Fourth World Conference on Women in Beijing from 1993 to 1995. Professor Yunus has also served on the Global Commission of Women's Health (1993-1995), the Advisory Council for Sustainable Economic Development (1993-present), and the UN Expert Group on Women and Finance. He also serves as the chair of the Policy Advisory Group (PAG) of Consultative Group to Assist the Poorest (CGAP). Yunus has also served on many committees and commissions dealing with education, population, health, disaster prevention, banking, and development programs. He is currently on the boards of many international organizations including Amanah Ikhtiar Malaysia (a Grameen replication project), the International Rice Research Institute in the Philippines, and Credit and Savings for the Poor in Malayasia. Professor Yunus also sits on the board of the Calvert World Values Fund, the Foundation for International Community Assistance, the National Council for Freedom From Hunger, RESULTS and the International Council of Ashoka Foundation, all of which are located in the US. Professor Yunus has received the following International awards: the Ramon Magsaysay Award (1984) from Manila; the Aga Khan Award for Architecture (1989) from Geneva; the Mohamed Shabdeen Award for Science (1993) from Sri Lanka; and the World Food Prize by World Food Prize Foundation (1994) from the US. Within Bangladesh, he has received the President's Award (1978), Central Bank Award (1985), and the Independence Day Award (1987), the nation's highest award.



Em 1976, Yunus empreendeu o passo decisivo e constituiu o Grameen Bank, instituição exclusivamente dedicada à concessão de microcrédito e detida por inteiro pelos seus clientes. Quando lhe pedem que des­creva o modelo de financiamento, diz apenas que estudou os procedimentos dos bancos tradicionais e fez tudo ao contrário. Contas feitas, o Grameen tem hoje emprestados quase 4 mil milhões de euros, abran­gendo 2,4 milhões de famílias. Os empréstimos destinam-se à promoção de uma miríade de micro empresas em vários sectores. Além do impressionante peso dos números, a grande conquista de Yunus é, dentro do sistema e contra a sua lógica, demonstrar que o crédito é a mais eficaz das armas na luta contra a pobreza e que a simples confiança pode ser sua garantia.
Impõe-se neste momento uma reflexão: se este professor de economia conseguiu o que ficou atrás descrito dentro do sistema e contra toda a sua lógica isto prova duas coisas em simultâneo: Primeiro o capitalismo não é a solução para os problemas que a maior parte da humanidade se debate desde o século XIX. Segundo, há outras soluções, algumas das quais bem melhores como o exemplo acima apresentado.
Para concluir: Nada do que foi falado é original. A resposta solidária do Professor Muhammad Yunus é devedora de Proudhon e muito especificamente daquilo que em 1848-1849 ele chamava de Banco do Povo. Alfred Darimon amigo pessoal de Proudhon e seu secretário durante uma parte da sua vida escreveu De la réforme des banques em 1856 onde no capítulo la Banque du Peu­ple se pode ler o seguinte: « La gratuité du crédit est devenue chose si ordinaire, qu'après avoir servi d'étendard aux radicaux elle commence à être un moyen pour les conservateurs de se rendre populaires. » Por sua vez Emile de Girardin que escreveu a introdução dessa mesma obra diz o seguinte: « Puisqu'il y a unanimité sur ce point que, seul, le travail est la source de toute richesse, pourquoi donc le travail, dans ses rapports avec les Banques, compte-t-il pour presque rien, quand il devrait compter pour presque tout ; et pourquoi le numéraire compte-t-il pour presque tout, quand il devrait compter pour presque rien ? Est-ce équitable ? Est-ce profitable ? »
O Banco do Povo de Proudhon prende-se com as suas propostas de gratuitidade do crédito. Mas isso é uma outra história para um outro dia.