sábado, dezembro 31, 2005

No Fim de mais um Glorioso Ano - momentos de dentro

"Os grandes só parecem grandes, porque estamos ajoelhados" Proudhon

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Os lucros do sector bancário português elevaram-se a 883 milhões de euros no primeiro semestre deste ano, segundo o boletim informativo da Associação Portuguesa de Bancos divulgado à poucas semanas.
O resultado bruto de exploração das 49 instituições incluídas na amostra atingiu os 1547 milhões de euros e o produto bancário cifrou-se nos 3530 milhões de euros.
A ABP realça que, por falta de valores homólogos de 2004, na sequência da introdução das novas normas contabilísticas internacionais, os valores apresentados não são comparados e não há uma interpretação evolutiva.
O activo líquido do sector somava a 267.000 milhões de euros no final de Junho, para um crédito a clientes de quase 169.000 milhões de euros.
Os recursos de clientes, de 112.879 milhões de euros, e as responsabilidades representadas por títulos, no valor de 31,7 mil milhões de euros, mantiveram-se como os principais meios de financiamento da actividade dos bancos, representando no conjunto mais de 54 por cento do total do activo.
Na estrutura do balanço do sector é evidenciada a importância do crédito concedido, ao atingir 63,3 por cento do activo líquido, enquanto os recursos captados junto de clientes ficaram nos 42,3 por cento.
No crédito concedido, o segmento que mais subiu 7,7 por cento, foi o dos particulares, o que poderá justificar a redução do rácio relativo ao crédito de cobrança duvidosa, para 1,9 por cento.
Nos principais indicadores de estrutura financeira, a APB realça que se mantém o perfil, com uma predominância do peso do crédito no activo, 61,39 por cento, e a insuficiência dos recursos de clientes para fazer face ao volume do crédito concedido (114,16 por cento).
O rácio de solvabilidade para o conjunto das 49 instituições analisadas situou-se nos 9,73 por cento.
No que respeita a indicadores económicos, a APB salienta o valor da margem financeira, de 1,63 por cento, a margem de negócio, de cerca de 2,94 por cento, e o rácio que traduz o peso dos custos no produto, que estava acima dos 56 por cento no final do semestre.
Até Junho de 2005 e comparando com um ano antes, o sector bancário em Portugal empregava menos 800 pessoas, totalizando 41.273 funcionários, mas existiam mais 96 balcões, ou seja uma rede de 4061 balcões.


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Em 2004 os lucros líquidos das 500 maiores empresas em Portugal somaram 3.111 milhões de euros (623,7 milhões de contos), tendo aumentado 42,1% relativamente a 2003. Se se considerar o período 2001-2004, o aumento dos lucros destas empresas atingiu 86,7%. Estes dados mostram que a crise económica não está a afectar as maiores empresas, revelando-se até como anos dourados — contrariamente ao que sucede com as pequenas e médias empresas.Este aumento de lucros tem-se verificado simultaneamente com um aumento menor de vendas e de crescimento do VAB (riqueza criada). Por exemplo em 2004, os lucros cresceram 42,1%, as vendas 7,1% e o VAB 21,3%. Aquele crescimento dos lucros parece ter sido conseguido fundamentalmente pela redução da percentagem do VAB destinada ao pagamento de impostos ao Estado e ao pagamento de remunerações aos trabalhadores.Em 2004, cerca de 15% de toda a riqueza criada no nosso País já era controlada pelas 500 maiores empresas e verificou-se uma tendência continua de aumento ao longo dos últimos 4 anos. Efectivamente, entre 2001 e 2004, o VAB destas 500 empresas aumentou de 16.080 milhões de euros para 18.554 milhões de euros. E em 2004 elas absorviam apenas 6,1% da população empregada.Em 2004 a Autoeuropa — uma das maiores empresas a funcionar em Portugal — continuou a não divulgar dados de natureza económica e financeira. Em 1999, os lucros da Autoeuropa haviam atingido 12,3 milhões de contos e, em 2000, cerca de 16,2 milhões de contos — portanto aumentaram 32,5% apenas num ano. A partir de 2000 a Autoeuropa deixou de divulgar dados de natureza económica e financeira. Pouco depois ela impôs um congelamento de salários aos seus trabalhadores por 3 anos, que se prolonga até Setembro de 2005, determinando uma redução do poder de compra salarial da ordem dos 8%.Mesmo em relação às estruturas representativas dos trabalhadores da Autoeuropa, a empresa tem dito que são dados confidenciais, violando a lei portuguesa (artº 503 do Código do Trabalho e artº 358 da Lei 35/2004). É evidente que, ao ocultar aquilo que outras empresas a funcionar em Portugal, (inclusive estrangeiras) divulgam todos os anos, a Autoeuropa levanta suspeitas na opinião pública e viola a lei. Enquanto toda a gente é mandada a apertar o cinto, as 500 maiores empresas viram os seus lucros líquidos crescer em 42,1% (quarenta e dois vírgula um por cento) num só ano mais precisamente em 2004, relativamente a 2003.E não me lembro de um único comentador, economista, jornalista ou tecnocrata referir esse facto. Certos comentadores dizem que não é possível aumentar mais as receitas porque já se tinha ido buscar tudo o que era possível buscar. É praticamente um axioma que não se pode aumentar mais os impostos. Mas então se as empresas têm um aumento de lucros de 42,1%, não podem pagar mais? O problema é que esse aumento de lucro verifica-se exactamente por causa da diminuição dos encargos com os trabalhadores e com os impostos, não é à custa do aumento da produção. Ou seja, à custa da fuga aos impostos através dos paraísos fiscais, despedimentos, deslocalizações, etc.E depois temos outros comentadores que acham que só se sai da crise diminuindo as despesas do Estado. Acontece que aquilo que são despesas para o Estado, são receitas para nós. Nós entregamos cerca de metade da riqueza que produzimos ao Estado e o Estado devolve-nos parte desse dinheiro em forma de cuidados de saúde, estradas, escolas, etc. Parece que a população e as suas ambições monetárias são um empecilho para o progresso do país. Como se o país não fosse constituído por pessoas. Quer dizer, hoje temos que lixar a classe média, amanhã vamos lixar a classe baixa (aumentar a idade da reforma, obrigar os reformados a pagar mais IRS, etc) e assim acabamos por lixar todo o país (ou quase). Então e a classe alta? Então e os donos das tais 500 maiores empresas cujos lucros líquidos cresceram 42,1% num só ano? Vamos todos apertar ainda mais o cinto para que esses consigam ter um aumento ainda maior dos lucros?

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Os políticos prometeram que a Expo 98 se pagaria a ela mesma... Mas, nas bocas dos políticos, as palavras adquirem um significado muito especial. A Expo 98 deu prejuízo e o empreendimento imobiliário megalomaníaco de luxo, chamado “Parque Expo” também está a dar... Porém, com a engenharia contabilista, vamos assistir ao milagre do empreendimento da Parque Expo tornar-se lucrativo! Como? Se dá lucro é sempre à custa de alguém – uma pessoa ou entidade. Neste caso, será a Câmara Municipal de Lisboa e, consequentemente, os seus munícipes, em especial os mais pobres... A Parque Expo “vende” à CML as “externalidades", que ela própria – Parque Expo- avaliou em biliões . Sob esse nome esquisito esconde-se a exploração de arruamentos, de parques automóveis e da ‘marina’ deserta...um erro tremendo pois a acumulação de aluviões impede que funcione como tal! Estas coisas só dão e darão prejuízos toda a gente o está já a ver de antemão. Mas a Câmara Municipal de Lisboa aceita o negócio! Um triste negócio, nada mais que uma cobertura do défice monstruoso da “Expo” e o assumir de custos e prejuízos permanentes, assegurando assim a “rentabilidade” da exploração do Centro Comercial Vasco da Gama, do imobiliário, etc. Ou seja; a Parque Expo fica com os lucros e a CML com os prejuízos!


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O Governo socialista espanhol abriu este ano a possibilidade de cada cidadão se inscrever gratuitamente num domínio na internet. Isto em termos de futuro, e numa perspectiva de desenvolvimento da sociedade tecnológica, representa tanto como abrir gratuitamente uma grande auto-estrada que possa pôr em rede eficaz toda a Espanha e o mundo.
Os espanhóis correram de imediato para os computadores para poderem inscrever-se a tempo nesta iniciativa do Governo, aliás numa atitude premonitória do que acontecerá em breve na União Europeia. Na manhã de quarta-feira, 300 mil cibernautas tinham-se já registado. Um sucesso e um sintoma de que os cidadãos e as empresas em Espanha há muito assumiram que não se vai a nenhum lado sem as ferramentas que hoje permitem negócios directos, difusão de cultura e saber, comunicação.
O engenheiro Sócrates, que durante a campanha eleitoral fez duas promessas memoráveis - não aumentar os impostos e provocar um choque tecnológico no país -, parece que afinal trocou o choque pelo aumento dos impostos e deixou a tecnologia para a semana dos nove dias.
O aumento dos impostos não é mesmo virtual, é um verdadeiro choque eléctrico e as promessas de promover a sociedade do desenvolvimento transformou-se numa ridícula dedução no IRS para quem compre um computador para a família de modo a aguentar um prazo final sem validade. Convenhamos que, para quem tinha um programa tão ambicioso para as novas tecnologias, não está mal!
A verdade é que o preço do acesso à banda larga em Portugal é uma afronta à economia das famílias, com as operadoras a praticarem preços muito acima da média europeia, como aliás também acontece com as chamadas nos telemóveis. A informatização dos serviços do Estado está longe de ser eficaz e as escolas com internet e ambiente digital, habituando os jovens a conviver com o computador, são muito poucas.
Hoje, a utilização aberta das grandes estradas da informação é tão importante, ou mais, do que as Scut gratuitas que todos andamos a pagar ou do que o TGV e o aeroporto da Ota, que em breve nos começará a sair dos bolsos. Não estou a ver um espanhol a querer vir a Lisboa por haver TGV ou um turista a preferir Lisboa por finalmente ir ter um aeroporto a uma hora de Lisboa e 50 euros de táxi, ou seja, o dobro do que se paga entre Barajas e o centro de Madrid. Mas já imagino uma empresa vizinha a ter negócios e interesses com congéneres portuguesas que oferecem excelentes possibilidades de trocas em rede. A verdadeira auto-estrada para o futuro. O contrário das promessas virtuais de Sócrates.


“Ser guardado à vista, inspeccionado, espionado, dirigido, legislado, regulamentado, parqueado, doutrinado, predicado, controlado, calculado, apreciado, censurado, comandado, por seres que não têm nem o título, nem a ciência, nem a virtude (...). Ser governado é ser, a cada operação, a cada transacção, a cada movimento, notado, registrado, recenseado, tarifado, selado, medido, cotado, avaliado, patenteado, licenciado, autorizado, rotulado, admoestado, impedido, reformado, reenviado, corrigido.
É, sob o pretexto da utilidade pública e em nome do interesse geral, ser submetido à contribuição, utilizado, resgatado, explorado, monopolizado, extorquido, pressionado, mistificado, roubado; e depois, à menor resistência, à primeira palavra de queixa, reprimido, multado, vilipendiado, vexado, acossado, maltratado, espancado, desarmado, garroteado, aprisionado, fuzilado, metralhado, julgado, condenado, deportado, sacrificado, vendido, traído e, no máximo grau, jogado, ridicularizado, ultrajado, desonrado.
Eis o governo, eis a justiça, eis a sua moral!”
Proudhon

domingo, dezembro 25, 2005

Mudar a Sociedade!

Agir, é sempre pensar; dizer, é fazer.
Proudhon

Se pensarmos que a história da humanidade nos permite não só ter consciência e reflectir sobre ela, então todo o seu passado, presente e futuro podem ser objecto de reapropriação e vivificação dos valores societários que estiveram sempre presentes na luta pela emancipação da espécie humana. Que a futura sociedade se denomine anarquista, autogestionária ou socialista libertária não é determinante, porque isso é uma mera questão formal. Fundamental é que a aprendizagem social e o processo de aculturação da vida quotidiana dos indivíduos e grupos seja estruturado por relações sociais assentes na democracia directa, na participação, na partilha e na decisão sobre todos os mecanismos da realidade societária. O fundamental é que a prática e os princípios que a alimentam sejam estruturados pela liberdade, fraternidade, igualdade, criatividade, espontaneidade e autonomia entre indivíduos e grupos que integrarão as diferentes comunidades locais e regionais da sociedade mundial futura.
Nesta assunção, todo e qualquer projecto de emancipação social nunca poderá consumar-se na base do pressuposto da luta de classes polarizada à volta do proletariado e da burguesia. As contradições e antagonismos que atravessam a sociedade capitalista actual não se confinam exclusivamente às relações sociais de produção e à propriedade privada dos meios de produção circunscritos a actividade económica. A natureza opressiva e exploradora do capitalismo incide sobre vários grupos sociais que sobrevivem com base no trabalho assalariado. Se pensarmos ainda na destruição da natureza, na miséria e na alienação do ser humano, somos constrangidos a centrar a problemática da emancipação social no indivíduo. Este, nas suas múltiplas dimensões, ao ter-se transformado num objecto de produção e de consumo de bens e de serviços de forma alienada, ao tornar-se ainda num ser impotente e espectador da miséria, da guerra, do crime e do desemprego que grassa no mundo, independentemente da sua condição socio-económica, cultural e política, cada indivíduo, enquanto sujeito de revolta e lucidez, tenderá a integrar os movimentos sociais que aspiram realizar a revolução social.
Evidentemente que os movimentos sociais que resultam de uma acção colectiva pautada pela conflitual idade social nunca poderão consumar na prática a revolução social, se utilizarem os mesmos meios e objectivos que são desenvolvidos pelos partidos e sindicatos actuais. Estas organizações são enformadas por estruturas e funções assentes na divisão social do trabalho e na hierarquia da autoridade. Tal como as empresas ou outras instituições e organizações congéneres da sociedade capitalista, a concepção e decisão dos objectivos dos sindicatos e dos partidos são determinados pelas cúpulas dirigentes, controlando e integrando a acção colectiva das suas bases militantes. A emergência de qualquer tipo de desvio por parte destes será duramente reprimida por aqueles que detêm o poder. Hoje, não são mais do que fábricas de gestão social que procuram liderar as reivindicações e todos os tipos de conflitual idade social no sentido da sua integração nos padrões de manutenção da estabilidade normativa do capitalismo. Enquanto burocracia, exerce o poder nas suas instituições e numa parte do aparelho de Estado. Tendo proventos económicos, sociais e políticos, não têm interesse em liderar os movimentos sociais que põem em causa o capitalismo. Se enveredassem por este tipo de acção, poriam em risco a razão de ser da vocação actual dos sindicatos e partidos.
Denota-se que a estruturação de qualquer tipo de acção colectiva emancipalista que pretenda superar a acção dos partidos e sindicatos deve primar por relações sociais sustentadas pela democracia directa, a espontaneidade, a criatividade, a autonomia e a liberdade individual dos indivíduos e grupos que nela participam. São relações sociais baseadas no interconhecimento, sem chefes nem subordinados, sem uma divisão social do trabalho nem autoridade hierárquica subordinada aos ditames da dominação.
É por essa razão que se torna difícil sustentar que os oprimidos e os explorados foram sempre vítimas das traições dos seus dirigentes. Houve uma pequena parte do proletariado que não se vergou ao socialismo real. Mas, ao fazê-lo, foram fuzilados perante a indiferença dos seus iguais. De tudo isto se deduz que a questão da sua emancipação não se resume a um determinismo polarizado no desenvolvimento das forças produtivas e na economia.
É necessário chegar à conclusão de que o proletariado não é mera identidade dicotômica mecanicista. Ele não é somente uma classe social que é explorada e oprimida e que tem por missão histórica realizar o socialismo. É também uma massa humana indiferenciada que produz e consome segundo os seus desejos e os desejos da classe dominante. É igualmente uma singularidade social que, na sua existência real e concreta, assassina, explora, oprime quando exerce o poder e a autoridade. É na globalidade da vida quotidiana do proletariado que se pode compreender o grau de identidade ou não da sua identidade para com a sociedade que o produz e reproduz.
Mas, se podemos afirmar que a sociedade e as instituições produzem e reproduzem os indivíduos proletarizados, também podemos afirmar que são as diferentes singularidades dos indivíduos que produzem e reproduzem esta mesma sociedade e instituições. Só pela interacção indivíduo/sociedade e sociedade/indivíduo se pode compreender a natureza dos próprios indivíduos e da própria sociedade.
Parto do princípio de que as sociedades não se formam, nem desaparecem, nem evoluem a partir de um esquematismo determinista, fundamentado no que quer que seja. Estes pressupostos levam à exigência de que as actuais características alienantes, massificadoras, exploradoras, opressivas e embrutecedoras do capitalismo e do socialismo real sejam abolidas. Para realizar esta tarefa o Estado terá que ser extinto, assim como todas as instituições que produzem e reproduzem a miséria existencial dos indivíduos, o que implica a extinção simultânea do proletariado, da burguesia e de todas as classes sociais. Para além disto, é necessário abolir as relações sociais de produção que têm por base a produção de lucro e de mercadorias.
Digamos que, em face às contingências negativas que os modelos sociais referenciados apresentam em relação aos objectivos emancipalistas do género humano, não podemos continuar a evoluir no mesmo sentido. Porque penso que a espécie humana só tem persistido socialmente com base na solidariedade, no altruísmo, no amor e na liberdade; só desenvolvendo estes factores permitir-se-á a sociabilidade e a socialização humana conducente à formação de uma sociedade emancipada.
Evidente que tenho de admitir a outra vertente da questão. Na diversidade de cada singularidade humana também existe a agressividade, o egoísmo, a violência, que se traduzem socialmente na morte, exploração, opressão, miséria. No entanto, mesmo que a condição humana persista com uma predisposição para a morte, para a violência, para o egoísmo, e para a dominação, esta realidade traduzir-se-á em relações sociais institucionalizadas nos binómios dominador/dominado e explorador/explorado. Não obstante estes condicionalismos, é possível inverter esta realidade. Para isto é imprescindível desenvolver progressivamente uma ruptura individual e social, em termos teóricos e práticos, com os modelos sociais que servem de paradigma à escala universal.
Em primeiro lugar é necessário abolir as hierarquias e a autoridade ligadas aos esquematismos sociais. A diversidade e a singularidade de cada um devem ser exprimidas na sua autenticidade e liberdade. Segue-se que as leis e as instituições que regulamentarão toda a vida social, e a própria sociedade, devem exprimir-se a partir de uma acção relacional baseada na democracia directa. O poder dos indivíduos é imediato e tangível às acções sociais e institucionais do contexto em que estão inseridos. Nestas condições, não existe a necessidade de instituições ou de um Estado exterior à vida dos indivíduos. O poder passa a fazer parte integrante da sua vida quotidiana.
Em segundo lugar, os actuais modelos de produção e de consumo de riqueza social que produzem e reproduzem a sociedade têm que ser totalmente transformados. É necessário abolir a sua lógica irracional baseada na destruição da natureza e da espécie humana. O desperdício de energias, a morte, a guerra e o trabalho assalariado, a dilapidação da natureza e a alienação dos indivíduos são as expressões mais significativas dos modelos de produção e de consumo.
Só invertendo a lógica produtivista e consumista das sociedades em que estamos inseridos se pode encontrar um novo equilíbrio racional entre o género humano e a natureza. Neste sentido, impõe-se a dinamização de uma grande revolução cultural, com incidência nos planos ético e filosófico. Este objectivo deve visar a abolição das relações sociais de produção baseadas no lucro, agiotagem, embrutecimento e destruição humanas e, sobretudo, destruir a expressão totalitária que as mesmas expressam em relação à produção e ao consumo de mercadorias. A alternativa que se poderá desenvolver deverá basear-se na lucidez e na criatividade dos indivíduos como seres naturais e seres sociais. Defendendo esta alternativa, não pretendendo iludir o conteúdo da historicidade que produziu e reproduziu o género humano. É evidente que os conhecimentos adquiridos e a memória histórica das sociedades não podem ser abolidos mecanicamente. Pode-se, no entanto, inverter as lógicas irracionais dos actuais sistemas sociais, mantendo o que se identifica com a afirmação positiva do ser social e do ser natural.
Em terceiro lugar, está demonstrado à saciedade que os partidos, sindicatos e outras instituições que assumem a defesa dos interesses do proletariado não têm por função dinamizar a sua emancipação. O seu desenvolvimento histórico tem levado à integração e ao controle dos indivíduos, nos parâmetros da estabilidade normativa do capitalismo. Por outro lado, as estruturas sindicais e partidárias transformaram-se em autênticas “fábricas de gestão” social. A sua acção consiste em ajudar a produzir e a reproduzir a mercadoria força de trabalho como existe na sociedade capitalista. A dicotomia polarizada em dirigente/dirigido; o que sabe/o que não sabe; o que pensa/o que não pensa; o que concebe/o que executa, etc..., tipificam a realidade capitalista.
Pelas razões evocadas, os partidos e sindicatos de modo algum podem assumir as funções emancipalistas do proletariado. Pela sua identificação e integração no sistema social vigente ( e isto não obstante a sua oposição ao poder instituído), devem ser abolidos numa sociedade emancipada.
Em síntese, é na articulação sistemática e global dos três factores alternativos que a humanidade poderá estruturar progressivamente a sua emancipação. E se, na prática, este projecto societário tem somente um carácter hipotético e seja difícil de realizar, nos planos ético e filosófico a sua sistematização é passível de ser realizada com proficuidade. Que se chame “socialista libertária”, “socialista autogestionária” ou “anarquista”, pouco importa. Enquanto alternativa social, só poderá subsistir positivamente se resultar de um processo de transformações teórico-práticas no sentido da identidade progressiva entre o indivíduo natural e o indivíduo social.

sábado, dezembro 17, 2005

Mudar a Sociedade?

"A forma inteligente de manter as pessoas passivas e obedientes é limitar estritamente o espectro da opinião aceitável, mas estimular muito intensamente o debate dentro daquele espectro... Isto dá às pessoas a sensação de que o livre pensamento está pujante, e ao mesmo tempo os pressupostos do sistema são reforçados através desses limites impostos à amplitude do debate".
Noam Chomsky



A maior parte das pessoas tem dificuldade em imaginar uma sociedade onde não existam dominadores e dominados, poderosos e oprimidos. É natural que assim seja, não deve espantar alguém que aprofunda o tema. O mesmo se passava relativamente à escravatura nas sociedades esclavagistas, não apenas na antiguidade, como também até ao séc.XIX, em países com um tão "elevado padrão civilizacional" como os EUA, por exemplo. O mesmo se passava relativamente às sociedades onde existiu e existe servidão - feudalismo. Porque é que as pessoas pensam que o salariato, a escravidão assalariada é inerente às sociedades modernas? Porque a maioria das pessoas apenas concebe relações sociais moldadas pelo capitalismo quer seja em mãos privadas, quer seja do Estado. Isso é compreensível, mas não deve ser aceite como "evidência" de coisa nenhuma. Em contraste, devia-se racionalmente aceitar que as sociedades humanas são modificáveis por vontade dos humanos, que essas mesmas sociedades evoluem constantemente, que essas transformações não se fazem à revelia ou contra a vontade e desejo da imensa maioria... pelo menos, nos dias que correm! Essa é a razão porque temos possibilidade de construir outro tipo de relações sociais... nada nos tolhe verdadeiramente... apenas o receio infundado de que isso origine uma escravidão ainda maior. Para qualquer sociedade, para qualquer nível de desenvolvimento técnico, existem sempre alternativas não hierárquicas de organização. A questão reside portanto no desejo das pessoas viverem segundo um paradigma diferente. Se elas o desejarem, essa sociedade será construída.
Perante o colapso e a mentira histórica em que se transformaram as múltiplas experiências de instauração do socialismo em escala planetária, existe uma tendência em nos fazer acreditar que o único modelo de sociedade que se adapta positivamente à evolução da espécie humana cinge-se ao capitalismo. O capitalismo não deixou de ser um sistema social impregnado pela opressão e pela exploração do homem pelo homem, só que agora de um modo mais sofisticado e complexo. Como modelo de evolução da sociedade, não pode ser positivo se o considerarmos como aquele que melhor desenvolveu a competição, a domesticação, a guerra, a violência, a morte e a destruição da natureza e das espécies que nela ainda sobrevivem. Como modelo de emancipação da espécie humana, assente na solidariedade, na igualdade, na liberdade, na criatividade, na espontaneidade e no equilíbrio entre os homens, está esgotado.
Ainda que seja uma tarefa difícil para chegarmos a esta conclusão, basta tentar explicitar a natureza da crise que o capitalismo atravessa e delinear as hipóteses de criação de uma alternativa capaz de o superar historicamente.
No que se relaciona com a actual crise do capitalismo, podemos observá-la nas profundas mudanças operadas pelas novas tecnologias nos domínios da organização do trabalho, com especial incidência na divisão do trabalho, nas qualificações do factor de produção trabalho, no desemprego e na segmentação do mercado de trabalho. Por outro lado, o processo de industrialização e de urbanização levado a cabo pelo desenvolvimento do capitalismo, os processos de socialização e de controle das acções individuais e colectivas sofreram uma grande deterioração, a ponto de a violência, o crime e a desintegração social se transformarem numa enorme fonte de conflitualidade social. Por fim, sublinhe-se a destruição sistemática da natureza, a guerra, a fome, a miséria e a exclusão social que se está a generalizar por todo o planeta, a ponto de por em risco a sobrevivência histórica da espécie humana.
Quando afirmamos que estamos em presença de um tipo de relações sociais cada vez mais complexo e abstracto, queremos simplesmente dizer que os processos de socialização, de controle e de integração social decorrentes da acção individual e colectiva já não são possíveis de realizar de formas perversas e alienantes de participação, de partilha, de pertença e de decisão por parte dos seres humanos que neles intervêm. Desse modo, as relações sociais, em vez de serem protagonizadas por indivíduos e grupos através de uma acção directa, visível, autónoma e livre, são estruturadas por uma divisão do trabalho extensa, uma autoridade hierárquica e uma abstracção relacional da representatividade formal das instituições e das organizações que constituem a sociedade capitalista. Nas circunstâncias, tudo o que se produz, distribui-se e consome-se no mercado, na forma de bens e de serviços; todas as leis, decretos e portarias são provenientes do poder instituído; todas as decisões políticas, sociais, económicas e culturais são elaboradas pelos estados, pelas transnacionais e governos nacionais, regionais e municipais; todas as guerras, instalações de centrais nucleares, construção de casernas e de prisões são decididas pelo Estado; e, enfim, a própria destruição da natureza, em última instância, escapa ao controle da participação e da decisão do comum dos mortais que habita o planeta. Quem decide, participa e controla este processo são todos aqueles que têm uma posição social privilegiada na estrutura hierárquica de autoridade, da divisão social do trabalho, do Estado, das instituições e das organizações que produzem e reproduzem a actual sociedade.
Os indivíduos e grupos que têm de sobreviver nesta realidade complexa sentem-se demasiado pequenos e impotentes perante relações sociais que não entendem nem sentem. Em vez de serem os sujeitos que criam a sua própria história, alienam esta função numa burocracia totalitária que tudo sabe e decide. O comum dos mortais é um joguete nas suas mãos. Por isto, o espaço-tempo da vida quotidiana dos indivíduos e dos grupos está sendo cada vez mais objecto de capitalização. Tudo se vende e se compra no mercado da vida quotidiana: amor, trabalho, honra, dignidade, justiça, violência, crime, bens e serviços de consumos vários, orgãos do organismo humano, morte, etc. Quem não consegue integrar-se nos mecanismos concorrenciais e competitivos deste mercado é esmagado e escorraçado pelas leis normativas da sua racionalidade instrumental. Quem não tem poder, nem capital, nem prestígio social, nem dinheiro, mergulha na pobreza, na miséria, no desemprego ou na marginalidade social. Quem não consegue compreender e explicar a realidade social que o aliena e o transforma num ser infeliz torna-se facilmente um “doente” ou num “demente” que é preciso encarcerar nos hospitais psiquiátricos ou nas prisões. Neste contexto, percebe-se as razões que levam os seres humanos a se integrarem nos movimentos sociais que estão na base do incremento da religião, do racismo, da xenofobia e do nacionalismo. Percebe-se ainda as razões profundas que decorrem do vazio existencial dos indivíduos e grupos, que, não sabendo como sobreviver nesta sociedade, recorrem à droga, e ao crime.
Como consequência deste panorama existencial, os processos de socialização dos indivíduos e grupos que constituem a sociedade capitalista actual tendem a perder a sua importância nas funções de controle e de integração que outrora eram protagonizados pela família, a escola, comunidades locais e espaços públicos, mediatizados pelo conhecimento da praça pública, dos jardins, dos cafés e das associações recreativas e culturais. Em sua substituição, desenvolve-se o papel do Estado, das suas tecnologias, da comunicação social e da religião.
No caso específico das novas tecnologias, tendo presente os efeitos estruturantes da sua acção, sublinhe-se as transformações operadas pela informática, a micro electrónica, a telemática e a robótica. Como resultado lógico, assiste-se a supressão de milhões de empregos resultantes da extinção dos sectores da economia que estavam identificados com a “Segunda revolução industrial”. Por dedução lógica, todas as qualificações do factor de produção trabalho ligadas a essas actividades económicas foram também extintas ou foram objecto de uma mudança substancial com efeitos manifestos na sua desqualificação. Deste modo, o conjunto dos trabalhadores que integravam as actividades dos sectores industrial, agrícola e comercial clássicos foram progressivamente substituídos por outros que, na ocorrência, possuem qualificações ajustadas aos requisitos das funções e tarefas das novas tecnologias, modernamente denominadas como pertencentes à “terceira revolução industrial”.
Na plasticidade da sua representatividade social, o desemprego, a precaridade do vínculo contratual e a segmentação do mercado do trabalho transformaram-se nos grandes dilemas existenciais da vida quotidiana de qualquer trabalhador assalariado da modernidade capitalista. As novas tecnologias, ao permitirem a socialização da informação e da energia subjacente à acção dos seres humanos, de forma exponencial, reestruturaram radicalmente o espaço-tempo comunicacional e relacional do processo de trabalho. Todos os aspectos confinados na concepção, decisão, participação e execução de tarefas relacionadas com a produção de bens e serviços já não são passíveis de realizar num espaço tempo estruturado por relações sociais assentes na observação directa e em situação de presença física, mas através dos mecanismos externos e abstractos das novas tecnologias. Como corolário lógico, a divisão social do trabalho, a autoridade hierárquica, o controle e a integração social que enformam o processo de trabalho actual adaptam-se a um tipo de socialização que aprofunda drasticamente a institucionalização e formalização das relações sociais. Os signos e os significados da codificação e descodificação das linguagens confinadas à emissão e à recepção da informação e da energia que está directamente relacionada com a execução de tarefas e funções complexificam-se e demonstram-se cada vez mais abstractos aos indivíduos e nos grupos que manipulam as novas tecnologias.
Todos os aspectos analisados circunscrevem-se a todas as instituições e organizações que compõem a sociedade capitalista à escala mundial. Embora existam situações diversas em nível local, regional e nacional, em relação ao seus desenvolvimento específico, a desigualdade social e a exclusão social são o denominador comum da modernidade da opressão e da exploração capitalista. O Estado e o patronato, assim como a comunicação social, a religião, os nacionalismos e os integrismos religiosos na sua fase moderna, são a expressão mais genuína dessa realidade. A conflitualidade social actual é o resultado de uma acção individual e colectiva que tenta superar estas contradições e antagonismos. Paradoxalmente, os meios e os objectivos das reivindicações e movimentos sociais expressos na forma de greves, guerras, manifestações, eleições e outras acções não têm sentido, na medida em que hoje a mudança serve para que tudo continue como está.

sexta-feira, dezembro 09, 2005

PROUDHON E DEUS

“Penso em Deus desde que eu existo, confessa Pierre-Joseph Proudhon na sua importância filosófica, e não reconhece a mais ninguém senão a si o direito de a falar” (Justice, p.283). Ele relata que é esta continuada meditação que o conduziu à oposição do bloco rígido e encerramento do catolicismo da imanência revolucionária, sempre inalcançadas, da justiça.
Assim um dos anticlericais mais impetuosos do seu século, o inventor do “anti-teísmo”, longe de ter partilhado a descrença ou a indiferença de tantos outros, nunca mais cessou, segundo as suas próprias declarações, de atacar o divino. Aliás, a obra é disso testemunha, da primeira linha até às últimas.
Na verdade, o Deus com o qual ele se defronta assemelha-se mais ao Jeová tonante do Sinaï, quando este não está na “sua Natureza” de Espinoza, como aquele, transcendente e pessoal, da Trindade cristã. Mas será que se pode verdadeiramente manter um diálogo e um combate de toda uma vida face a um puro conceito? A luta com o anjo deste racionalista recupera muito mais mistério que a sua filosofia havia concedido. Esforcemo-nos, na medida do possível, de atravessar as sombras de uma presença que, sucessivamente se impõe e se oculta sem nunca explicar tudo feito pelo seu enigma irritante.
Nascido nos dias seguintes à grande Revolução Francesa, numa família permanecendo fiel ao catolicismo popular, Pierre Joseph foi baptizado dois dias depois do seu nascimento na paróquia de Madeleine de Besançon. Sua mãe tão honrada, bem como filha de um irredutível rebelde em matéria religiosa e política (o famoso avô Tournési), era piedosa, sem beatice, adormecendo cada noite os seus filhos com uma leitura do Evangelho: cheia de uma fé autêntica. O pai parecia ter sido pouco fiel: num monólogo que dá sobre a sua morte, Proudhon fez uma espécie de estóico sobretudo como um verdadeiro cristão (o que, aliás, não é inteiramente contraditório). O lar do básico como quase tudo à sua volta vivia, sem maior conflito, no seio da religião tradicional.
A infância de Proudhon inscreve-se portanto neste quadro, em desdém da miséria que foi muitas vezes o lote dos seus.
Ele vai regularmente ao catecismo, é mesmo marcado pelo seu abade que o recomendara para ser inscrito no colégio. Aos onze anos, ele faz a sua primeira comunhão e recebe no mesmo dia a confirmação com, diz ele, “uma piedade sincera” (Carnet X, 501). O que poderia não ter sido como um conformismo social responde, sempre posterior ao seu testemunho, a uma inclinação íntima que se pode qualificar de mítica; “Eu sentia deus, escreve ele, eu tinha a alma penetrada; agarrei desde a infância esta grande ideia, ela abordava em mim e dominava todas as minhas faculdades” (Lettre de candidature). Disposição do coração pouco comum, pelo menos naquela época. Certamente, bem mais tarde, na furiosa carga contra o arquétipo que representa aos seus olhos o cardial Mathieu, ele representara-se como tendo ao mesmo tempo vencido com prazer num “panteísmo prático” e uma exaltação que ele diz “pagã oposta àquele absurdo espiritualismo que faz a base da educação e da vida cristã” (Justice, II,368).Não contestaremos mais: se esta má imagem ajusta-se com aquelas que nós temos contado, uma e outra podem muito bem ter mais ou menos coexistido. Dualidade que qualificaríamos, algures de banal.
O que é certamente seguro é que, de modo não menos normal, este espírito por alguns lados ao menos profundamente religiosos conheceu também as suas primeiras dúvidas. Eles sobrevivem, diz-nos ele ainda, quase aos 15 anos de idade. A leitura, paradoxal somente nas palavras, do tratado da demonstração da existência de Deus de Fénelon, recebido a preço livre. Não somente os argumentos do célebre bispo parecem-lhe falíveis mas a revelação por essas páginas de que ele existe para os“ateus” mergulhava-o “na honra extraordinária” (Lettre de candidature). O nascido contraditor, o inimigo de todas as ideias recebidas era provocado.
Enfim, bem mais que as suas inquietudes metafísicas, é a hipocrisia opressante e arrogante do clericalismo da restauração que o conduziu à revolta. Por um novo efeito boomerang, a missão pregada em 1825 em Besançon como na maior parte das cidades (ele tem então 16 anos), acaba por o afastar da religião. O ano seguinte, pela ocasião das festas da Jubilée, ele recusa pela primeira vez de confessar-se (o que confirma a sua prática regular até agora). Muito classificado, mas não sem dilaceração, o jovem homem rejeita as suas correntes contestando a lacuna entre a realidade e os valores proclamados.
Ao seu redor ao longo dos anos seguintes, sob a influência de um primeiro amor do cujo nós não nos salvamos mesmo mais, não é menos clássico. É de certo modo o que Proudhon diz a si mesmo: ”Eu era cristão porque os amorosos, amorosos porque um cristão, eu posso dizer porque religiosos. A religião com efeito é a fé do absoluto, em todas as ordens do conhecimento e da sensibilidade “Carnet VIII, 1850”.
Menos atendida é a observação que este jovem homem que “perdeu” pouco antes a fé, depois está voltado para um ambiente que ele apresenta como sentimental, mete-se a devorar as obras de teologia e de apologética, nomeadamente aquelas dos tradicionalistas cristãos Maistre e Bonald. Da mesma época a sua descoberta apaixonada pela Bíblia, que ele não cessará de ler e de anotar. Ela figura em primeiro lugar das suas fontes de inspiração privilegiadas, segundo a confissão feita a Langlois, o editor da Correspondência.
Neste contexto onde a emoção está doravante ausente, ele acredita mesmo em algo começando a tornar-se “num apologista do cristianismo” (Lettre de candidature). Os primeiros trabalhos, “Essai de grammaire général (1837) e da Célébration du Dimanche”(1839) testemunhando uma parte. Seguidamente é ainda uma leitura religiosa aquela do “Essai sur l´indifférence” do primeiro Lamennais que o afasta definitivamente da fé católica.
Será que Proudhon, deixou igualmente naquela época de se interessar por Deus e pela questão religiosa? Nunca. Em algumas citações da carta de candidatura para a Pension Suard, um ano anterior à celebração mostram-nos bem: a biografia intelectual que lá é retratada confirma ao contrário a permanência das suas preocupações em relação a este assunto.
Sem dúvida, no prefácio da obra não somente o primeiro que ele reconhecia mas aquele onde se pode encontrar o princípio de toda a sua futura obra, a questão “O que é a religião?”, ele respondeu: “O sonho do espírito”, e aquela “O que é Deus?”: “Um X eterno”. Mas estas afirmações foram acrescentadas rapidamente na reedição de 1841. O teísmo do texto original, embora encobrindo uma última interpretação sociológica das prescrições mosaícas, devolvem-lhe o seu diferencial.
A posição central de Pierre- Joseph Proudhon sobre estes problemas, na época dos escritores fundadores, é formulada em todas as primeiras páginas ( éd. Rivière 140-146 ) da”Mémoire sur la Propriété”. Constatando a universalidade do sentimento religioso, o autor interroga-se sobre a capacidade daquela de fundar uma morada social na perspectiva revolucionária. Resposta negativa. A argumentação que seguiu será retomada e completada depois mas não mudará quanto ao essencial. Ela apodera-se sobre esta dupla constatação: de um lado a existência ou não existência de Deus salva a demonstração científica que se impõe doravante; a outra, a absoluta teologia serve para justificar o absolutismo económico político em que o propósito da obra é justamente desmoralizar.
Então ainda não tendo lido Feuerbach, Proudhon esboça a seguinte análise: “…depois de ter feito Deus à sua imagem, o homem quis ainda apropriá-lo; não contente de desfigurar o grande ser, ele trata-o como seu património, seu bem, sua coisa: Deus (…) torna-se acima de tudo propriedade do homem e do estado (p.141). Esta captação da divindade pelos poderes coloca-se ao mesmo tempo à sua própria justificação (“Omnis potetas a Deo”) e aquela da conservação da desigualdade, logo do pauperismo sem os quais os poderes não poderiam perpetuar-se.
Assim, aos olhos do recente sociólogo, a dominação do homem por homem é ela própria homóloga à exploração do homem por homem. Ambas pretendem apoderar-se sobre o desenho da Providência, que teria desejado que a natureza pecadora nunca fosse submissa à autoridade soberana investida na terra do poder de Deus para corrigir a inclinação dos homens para o mal. Ora a revolução afirma exactamente o contrário. Ela deduz-se da percepção da justiça própria aos seres humanos e que a eles pertence promover. A propriedade sobre a sua forma absolutista, causa e produto da injustiça social, não desaparecerá que destruamos as bases teológicas.
Aqui inscreve-se uma homenagem a Jesus, célebre nos termos entusiásticos como o grande profeta da igualdade e contando com o tal iniciador da primeira revolução da história. Proudhon não se pronuncia sobre a sua natureza divina denominando-a “Palavra de Deus”, transcrição literal da fórmula. Esta admiração, constantemente interrogativa, face à pessoa e à imagem daquele que ele venera como “a santidade da sua vida prodigiosa inteligência “(I.G., p. 307), é um tratado constante do nosso autor. Herdado da sua fé de juventude, este interesse não cessará de se afirmar ao longo da sua vida, complicando-se de hipóteses por vezes bizarras. Um grande livro tornou-se no fruto. O sucesso daquele de Renan e de outros factores, impediram Proudhon de o conduzir ao seu termo: ele arrepende-o vivamente. Poder-se-à transportar a montagem ao judicioso por aquele Robert Aron de tentar reconstruir a substância.
Procura teórica, de uma ambição imensa, a “Création de l´ordre dans l´humanité” (1843) não podia esquivar os longos desenvolvimentos sobre os temas que viram a ser resumidos. O ponto de partida é, de novo, uma reflexão sobre a religião, sem a qual “a humanidade pereceu desde a origem” (p. 126). Este tributo devolvido, a convicção é de novo afirmada que, fundada sobre a autoridade e o imobilismo, a primeira religião é “incapaz de descobrir a ordem” (p. 46). É por isso, na sua incessante procura, a humanidade substitui-o pela filosofia. Mas a razão dedutível ela mesma é incapaz de dar conta da totalidade do real. É então que Proudhon fórmula a sua lei dos três estados – ele diz “momentos” – que faz suceder às duas primeiras épocas da humanidade – religião e filosofia – aquela da ciência, chamada metafísica.
Desde então deus parece desaparecer do horizonte, com o objectivo da “série”,lei geral que governa o universo. Tanto mais que é assinado à economia política ciência recentemente descoberta pelo autor com uma sorte de êxtase um papel determinante na plena ocupação pelo homem do seu domínio próprio. Este aqui resulta do papel criador do trabalho humano, substituindo precisamente o que se atendia antigamente da única Providência divina: “Se, como os animais, o homem não impunha para trabalhar que as suas mãos, ou se, como Deus, ele movia e manipulava a matéria pela sua vontade, ele não faria ciência económica; a sociedade seria nula; qualquer coisa faltaria no universo. Só este significado, trabalho, contêm pois toda a ordem de conhecimentos” (criação 298).
Ora, contrariamente a este anúncio, a obra seguinte, “Système des contradictions économiques ou philosophie de la misére” (1846), grande tratado que entende deixar as bases de uma ciência económica à fé rigorosa e revolucionária, não se situa apoderada sobre a posição da materialidade pura. Desde o prólogo, situado sob o signo de um epígrafo biblíco (destruam et aedificabo), Proudhon aborda com efeito o seu assunto de uma maneira acima de tudo, surpreendente, visto que o motivo condutor segue-o: “Eu tenho necessidade da hipótese de Deus”. Esta fórmula faz evidentemente eco à célebre resposta do astrónomo Laplace, dizendo a Napoleão que se admirava (descrente embebido contudo do deísmo das luzes) de não encontrar traço de Deus na sua “Mécanique céleste”: “Senhor, eu não tenho necessidade desta hipótese”. Eh! Bem no princípio de um livro à ambição científica, onde as “contradições” da economia vão substituir-se às “harmonias” providencialistas, Proudhon coloca esta questão de Deus de uma forma muito clássica. É o que pelo menos aparenta. O que não deixou de suscitar bons comentários.
Ao longo dos 2 volumes, por outro lado, encontra-se um comentador porém benevolente, não falamos de Marx! – chamou-a”uma teodiceia invasora e enigmática”(Edouard Droz,P.J.Proudhon,1909). Por toda a parte, com efeito, o autor mostra fortemente a necessidade de ordem que o anima, sua recusa categórica de um azar equivalente para si como o absurdo. É assim que entre o capítulo do pagamento do imposto e aquele sobre a balança do comércio intercala-se aqui 25 páginas, de novo, relatam a Providência. Pode-se dar muitos outros exemplos. Mais tarde, o autor dirá por incidente: “Eu colocava-me no ponto de vista dos meus leitores” (Justice, III, 184).
Mesmo fazendo parte das ideias que o rodeiam, esta precisão permanece insuficiente para dar conta da obstinação teológica de 1846. O leitor compreendendo somente, ainda que sem surpresa, a razão até ao fim do 1º tomo ele acerta sobre a fórmula famosa: “Deus é o mal!” (p.384). Jogando com o seu hábito do paradoxo. Proudhon revela porquê ele tinha tanta falta de Deus: simplesmente para o combater. Ele não nega o Absoluto, o que depois não tem sentido, mas recusa fazer apelo a uma intervenção exterior no domínio que ele reserva cruelmente à responsabilidade humana.
Podia-se desde já lê-lo em todas as cartas no prólogo: “Eu tenho necessidade da hipótese de Deus para fundar a autoridade da ciência social” (C.E., 52). Depois tudo nem é de bom método. Somente esta afirmação, quase banal, o autor coloca-se a professá-la em termos onde a violência iconoclasta procura deliberadamente fazer escândalo, a fim de forçar a intenção. Tal é a sua maneira desde já bem conhecida, seu demónio secreto se assim o quisermos. Sem dúvida também um símbolo mais profundo.
Sem nós para mover mais do que aquilo que lhe convinha, tentemos pois substituir a maldição sacrilégio numa coerência do razoável. Eis aqui as passagens essenciais: “Eu acreditava antigamente, diz Rousseau, que se podia ser um homem honesto e passar-se por Deus: mas já regressei deste erro.” Mesmo a base do raciocínio daquele de Voltaire, mesma justificação de intolerância: o homem faz o bem e não se abstém do mal que pela consideração de uma Providência que o vigia (…). E, para preencher o disparate, o mesmo homem que reclama assim para nossa virtude a sanção de uma Divindade remuneradora e vendedora, é também aquele que ensina como dogma de fé a bondade nativa do homem.
E eu digo: o primeiro dever do homem inteligente e livre é de perseguir incessantemente a ideia de Deus de seu espírito e da sua consciência. Porque Deus, se ele existe, é essencialmente hostil à nossa natureza e nós revelamo-nos de modo algum à sua autoridade: Nós chegamos à ciência contra a sua vontade, à sociedade contra a sua vontade: cada um dos nossos progressos é uma vitória naquela que nós esmagamos a Divindade (…). Eu não censuro ao autor as coisas de me ter feito uma criatura desarmoniosa, um incoerente composto, eu não podia existir nesta condição. Eu contento-me de o apregoar: Porquê me enganas tu? Tu triunfavas, e ninguém ousava contradizer-te, quando, depois de o ter violentado no seu corpo e na sua alma o justo Job, figura da nossa humanidade, tu insultavas a sua piedade sincera (…). E agora eis que és destronado e despedaçado. Teu nome, se à muito é o último significado do erudito, a força do Príncipe, a esperança do pobre, o refúgio do culpado arrependido, eh bem! Este nome incomunicável, doravante visto ao engano e à maldição, será chamado por entre os homens. Por Deus, é loucura e cobardia; Deus é hipocrisia e mentira; Deus é tirania e miséria; Deus é o mal” (op.cit., pp.382-384).
Com força, exagero mesmo, Proudhon não faz mais do que afirmar a autonomia do homem, a sua liberdade diante do próprio Deus. Visto que este Deus, de maneira incompreensível, deixou-nos presos com o mal, proibindo a nossa partida. Rendemo-nos ao mestre do nosso destino, sem dar à nossa inércia um álibi de uma Providência na qual ele manifesta que ela não saberia agir por nós. O mal por excelência é a demissão do homem. O pecado supremo é o abandono da fatalidade, baptizada com o nome da vontade divina. A negação da sua natureza que toda a alma bem nascida, todo o espírito que se quer científico, não pode combater com a última em vigor.
O Deus da Bíblia e dos Evangelhos fez-lhes por outro lado um trabalho. Se ele existe não seria proibido ser um tirano mas a partilha do homem, criado “à sua imagem.”
Sem trair o pensamento proudhoniano, um crente dos nossos dias pode interpretar neste sentido. Ele próprio não escrevia, ao mesmo tempo, ao seu editor Guillaumin: “…se Deus e o homem são opostos, eles são por isso mesmo necessários um ao outro, e (…) a sua existência é incompleta aos dois tanto que eles não são reconciliados”(21-1-46,Cor.,2,228).Concepção que está no coração da obra inteira: aquela da contradição criadora, da paz pelo conflito.
Mas, para se opor, são precisos dois. Proudhon, repete-o, rejeitou sempre a qualificação do “ateu”. Dos textos múltiplos, de períodos diferentes, não são autorizadas nenhumas dúvidas a este respeito. Se ele recusa o nome, é em primeiro lugar porque ele não o estima como ciência: não se pode negar o desconhecido. Mas é também, provavelmente sobretudo, porque ele discerne no antiteísmo, com tanto que isto aqui é pura negação, uma forma de fatalismo (de”nihilismo”, diz ele na Justice III, 179), equivalente, mesmo que de sentido oposto, ao providencialismo desonrado.
É toda a significação do termo de “antiteísmo”, à qual Proudhon tanto mantem. O episódio um pouco burlesco da sua iniciação maçónica, contada por ele próprio não sem jubilação (Justice), ilustra bem esta calma posição filosófica como uma bandeira. O 8 de Janeiro de 1847, quando o venerável da “Loge Sincérité, Parfaite Union e Constante Amitié” obriga-o, ritualmente, a responder à questão: “Qual o direito do homem no Grande Arquitecto do Universo?”, o novato responde: “A Guerra.” E ele comenta: “Guerra a Deus, ou seja, ao Absoluto”, o que não atenuava, neste local e nesta circunstância, o carácter impróprio da profissão da fé. Compreende-se que, mesmo não tendo cessado de se considerar como mestre, o autor nunca teria esquecido o grau de principiante.
O que ele entendia exprimia nesta forma bélica, saltitante mesmo, é na posição não tanto de refúgio do que de orgulho independente ao respeito da Divindade. Mas mesmo a enormidade e a violência da maldição não traduzem alguma inquietude secreta? Não se dava tanta pena para amaldiçoar o nada.
Se ele nunca admitiu o ateísmo, Proudhon interessou-se em contrapartida – provavelmente tentou – pela “religião do humano”, a tal que Feuerbach vinha a exortar. Nos mesmos anos onde se elaboravam as Contradições, Bakounine e sobretudo Grün, seu tradutor alemão, esforçaram-se para o persuadir que o hegelianismo é a filosofia de que ele tem falta, com a condição que ela seja pregada ao seu idealismo. E mais: seus amigos persuadiam Proudhon que ele tinha reencontrado por ele próprio os princípios da dialéctica, aplicada ao homem e não mais ao absoluto.
É assim que Grün felicita-o calorosamente de ter cumprido “a negação da negação”, fim do fim da dialéctica, e vai até agora conceder-lhe o titulo de “Feuerbach francês”, lamentando todavia as suas modificações do “espírito religioso” (CF. Das Liberdades Sociais na Bélgica e na França, 1845). Os livros guardam o traço dos esforços do seu autor para se iniciar com um modo de pensamento à primeira vista próximo do seio mas o qual, não leram alemão, ele só tem acesso em segunda mão e através dos três intérpretes muito orientados.
Preocupações que apareciam igualmente nas contradições, não somente pela forma- como aquela foi remarcada, a mais alemã encontrada no próprio autor – mas, entre outros, sobre o problema que nos ocupa. No prólogo já citado, Proudhon escreve com efeito :”se é incontestável que a humanidade, afirmando Deus o que quer sob o meu nome ou do espírito, não afirma que ela mesma “(p. 50); alusão clara de Feuerbach. Contudo ele acrescenta: “Não se saberia negar não mais que ela afirma-se então como outra que ela se conhecia”.
Assim, ao mesmo tempo que elas fazem referência a algumas teses de (”L´Essence du Christianisme”, as Contradições destacam-se claramente. Desde a conclusão do tomo I onde era precisamente proclamado o antiteísmo, encontra-se uma severa crítica de “divinização da humanidade” e das suas consequências, discernadas no mesmo Feuerbach. O humanismo, diz Proudhon, é ainda uma ilusão religiosa, a mais temível já que ela conduz o homem a adora-se a ele próprio. Ou seja, a criar as condições de um fanatismo sem freio, como ele o censurará mais tarde ao culto do “Grande Ser” de Auguste Comte.
Oposição particularmente clara nas anotações marginais trazidas a um artigo do refugiado alemão Ewerbech, que Grün lhe tinha comunicado. Quando Feuerbach escreve de uma forma peremptória: “A medida de organização de um ser é a medida da sua razão”, colocando esta razão como infinita no seio da espécie, Proudhon objectiva: “Falso. Nós veremos além do que é que nós devemos esperar”. E ele prossegue, sempre comentando as dissertações feuerbanianas:
“A razão de um ser é o seu horizonte. Sim, mas esta razão pode exceder o ser e não mais concordar com ele e tal é o mistério da lembrança da espécie. E isso resulta precisamente da natureza da nossa consciência, da faculdade de crescer de género em género, de procurar o absoluto; faculdade que nos revela, por análise a nós mesmos, que nós somos o género superior, o mais perfeito da criação, mas não o absoluto. O humanismo é uma falsa religião (Citado por Daniel Halévy, Vida de Proudhon, p. 360 e retomado mais completamente por Haubtmann, I, 524).
Seguidamente, nada neste pensamento sempre em movimento não sendo simples, ele chegará a exclamar no mesmo tempo de justiça: “ Deus é consciência da humanidade” (Justice, IV, 445). Faremos a parte das formulações que por vezes muito apertadas, como o seu autor ele mesmo admitido. O problema com o qual ele se desata é este aqui: a justiça é uma realidade especificamente humana e ao mesmo tempo ela deve escapar por algum lado humano “demasiado humano”. Imanente ao homem, ele é mais ou menos transcendente ou em todo caso contra a transcendência, naquela sorte. Ele existe mais longe do humano, sem o qual o homem com tanto que se explicaria e não existiria mesmo.
Segundo esta perspectiva, a equação que Proudhon estabelece por vezes entre a justiça e Deus – “ A justiça é um ideal supremo oferecido à adoração dos homens sob o nome de Deus” – deve compreender-se ao que ele apela “ a categoria do ideal” , ou seja a sublimação pela inteligência de um princípio que ela pode atingir, nem mesmo conceber. Mas esta expressão ou pelo menos uma das outras, ele dá a uma interrogação permanente, pela qual alguma solução não é verdadeiramente adequada.
Estimando mesmo tudo, ou pretendendo, ter isolado a questão de Deus, Proudhon não cessa portanto de encontrar a cada desvio do caminho. Sempre com provocações, suicidando-se mais ou menos claramente que o último significado está longe de ter sido dito. Assim com pena ele fórmula as teses provocatórias das contradições, onde ele admite que o seu antiteísmo, como por outro lado o conjunto dessas negações, apelam a uma contrapartida positiva. A testemunha curiosa confessa a um padre que a identidade é desconhecida: “A crítica que eu fiz da ideia de Deus é análoga a todas as críticas que fez da autoridade e da propriedade, etc. ; é uma negação sistemática, destinada a chegar a uma afirmação superior igualmente sistemática” (à l’abbe X, du 22-1-49, Cor., VI,114).
Contemporâneo é o sermão público, talvez mais espantoso agora, pronunciado no banquete de inauguração do Banque du Peuple que se seguiu pouco famoso “Toast à la Révolution” : “Eu juro diante de Deus, diante dos homens, sobre o Envagelho e sobre a Constituição” (O povo, 31 de Janeiro de 1849, Obras, ed. Lacroix, VI, 260). De seguida, uma invocação, bem no tom da época mas não menos inspirada, no “Christ républican” cujo o orador inspirado reconhecia de uma certa forma a divindade: “É, como vocês sabem, o Deus do Evangelho, sempre o Deus dos pobres e dos operários, sempre o Deus dos oprimidos e dos pescadores, sempre o Deus de todos os sofrimentos (…). As concepções de Cristo são empreendidas de tanta grandeza e de santidade que elas esquecem infinitamente tudo o que há de melhor naquelas do homem. (…) Só Deus é o legislador das nações, porque ele é bom no supremo grau.”
Calor comunicativo? Concessão aos sentimentos mais derramados junto dos seus auditores? Todas as exigências são permitidas. Talvez lhe seja mais simples de admitir que aquele que pronunciava estas palavras, marcadas aparentemente pela chancela da sinceridade, oscilava-lhe mesmo entre duas afirmações contraditórias que, no seu espírito, chegam a reconciliar-se um dia. De um lado a rejeição a Deus com tanto que um álibi de todas as opressões e por conseguinte a demissão do homem. Do outro a procura incansável de um valor supremo sem o qual a liberdade não tem sentido, a igualdade de existir. Sim com a orgulhosa afirmação de um antagonismo colocando o homem de igual para igual numa face a face com Deus. Mas não à destruição de todo o valor numa irrisória e ruinosa divinização do humano.
O antiteísmo de Proudhon da primeira época poderia ser reatado aos três velhos da corrente da “teologia negativa” que, desde o século XIX, aos nossos dias, conheceu uma reviviscência. De origem platónica, depois retomada com as variantes de diversos pensadores cristãos, esta forma de pensamento é de essência mística. Esmagada pela transcendência divina, ela rejeita o debate sobre a “existência “de Deus que voltava a aplicar-lhe a condição das criaturas. A mesma noção de divindade é em si imensurável que seria mutilá-la, querer insultá-la, do que de a aplicar a um qualquer predicado. Deus é desconhecido por natureza, absolutamente. A única maneira, não de o conhecer – o que é impossível – mas de o reconhecer, de sondar o abismo que nos separa, é de rejeitar neste respeito uma formulação que seria por si própria uma limitação. É assim que um cristão atormentado como Kierkegaard, contemporâneo de Proudhon mas que não poderia ser seu conhecido, não hesita em escrever: “O cristianismo existe porque existe raiva entre Deus e os homens”, qualificando de “inimigo mortal” o absoluto refinado pelas instituições religiosas. Expressões admiravelmente parecidas aos pretendidos blasfémicos proudhonianos.
A supor que ele havia conhecido a graça, Proudhon não se precipitou numa fé que, para a filosofia dinamarquesa, só era capaz de transpor de um salto do abismo do desconhecido. O Franc-Comtois suportou a angústia da oposição, não aquela da adoração. Acantonado o Absoluto, sem o negar, na esfera do desconhecido, ele coloca mais e mais o acento sobre o “tornando-se”, no lugar do “sendo”, sobre a tendência, não sobre um objectivo inatingível já que ele derruba-se cada vez que se pensa em atingi-lo.
Separando-se radicalmente de um Feuerbach como do todos aqueles que fazem da Humanidade um infinito, Proudhon vê ao contrário a razão humana em que “progressão, sucessão, nunca simultaneidade nem plenitude” (comentário supra citado, ao artigo de Ewerbeck ). É assim que ele escreve na “Filosofia do Progresso”, obra capital para apanhar toda a sua evolução ulterior: “deus não pode mudar a sorte, é somente nesta condição que ele existe” (p.70). os dois estudos que compõem o livro são consagrados a demonstrar que o perfeccionismo da Humanidade nunca é somente adquirido mas não valeria conhecer alguma realização definitiva, pois todo o progresso acabado exige o seu próprio acabamento. Tal é a maneira proudhoniana de considerar o infinito.
Esta concepção de uma imanência que suscita a sua própria transcendência é a trama do grande tratado “Da Justiça”. A afirmação da justiça como valor supremo, motor e objectivo da História, é o próprio do homem, à vez da sua primeira razão e seu fim. Tudo o que pretende procurar algures é o fundamento do trabalho e do direito – submissão vertical à divindade ou aspiração horizontal a uma fraternidade total – nega a especificidade da condição humana e, por consequência, impede todo o progresso.
Desde então é o mesmo movimento da consciência humana, indissoluvelmente consciência de outrem, que se encontra – ou pelo menos que deve procurar-se – o absoluto.” Eu afirmo a Humanidade no lugar do ser supremo”, diz Proudhon para resumir o livro (a Tissot, de22-12-53,Cor.,v,299). E, na mancha do texto ele multiplica as fórmulas que retomam esta ideia central. Nós já temos citado uma entre elas, mas aqui aquela que contêm todas: “Deus é a consciência da Humanidade” (Justice 4,445). O absoluto não está na imanência mesmo que a imanência seja o fim – aqui há os dois sentidos do termo – do só absoluto que nós poderíamos atingir.
Mas onde se situa a fonte desta premência, também universal bem como personalizada, da justiça? Atrás dos seus aforismos e das suas análises por vezes embaraçosas, Proudhon não cessa de andar à volta da mesma interrogação aborrecida. Na época de Contradições, ele confiava-a, dialogando consigo, num fragmento intitulado “Epílogo”, muito provavelmente destinado à conclusão do seu livro: “De onde vem esta paixão da justiça, que me atormenta e irrita-me, e indigna-me? Eu não posso justificar-me. É o meu Deus, a minha religião, meu todo; e se a começo a justificar pela razão filosófica, eu não o posso” (Carnet 1,226,março de 1846). Percebe-se no tremor do tom como a confissão é de um problema profundo e permanente.
Em certos momentos, contudo, ele persuade-se que uma tamanha questão é vã e que a constatação da omnipresença, logo do valor operacional, da ideia da justiça tende a fundar a acção revolucionária. Aos outros instala-se não mais que a dúvida – sobre este ponto o duvidoso que era provado – mas, mais subtilmente um “tormento”, a insatisfação do seu espírito essencialmente metafísico face á questão das questões, que ele não pode resolver.
Proudhon não só se impacienta de ser incapaz de responder, vendo bem tudo o que esta incapacidade reenvia-lhe para lá onde ele não quer sobretudo ir. Preso textualmente, o equivalente entre a justiça e o Absoluto não pode conduzir a esta religião da Humanidade cujo erro ele tinha denunciado.
A falsa religião do humanismo, é o mesmo que dizer a adoração do homem por ele mesmo, deriva fatalmente contra uma “deificação da espécie”(C.E.2,174), cujo resultado não pode ser mais que a submissão dos valores à razão colectiva, sendo a negação da própria justiça. É isto que o autor de “Contradictions” tinha repudiado instintivamente na visão de Feuerbach, herdado do idealismo absoluto de Hegel. Se ele a criticou com tanto apreço a alienação religiosa de um cristianismo posto ao serviço dos poderes, era para admitir aquela que resultaria fatalmente do culto pretendido à justificação do poder total do Homem, quando este aqui havia sido revestido dos atributos da divindade? Escapa ao coração da grande revolução, o Terror não foi de outra causa e toda a obra proudhoniana é consagrada a denunciar esta perversão fatal.
A questão central sobre o ser está, menos do que nunca, parado de trabalhar o Proudhon -mas não o resignou dos últimos anos. É então que ele se esforça por juntar os elementos acumulados do livro sobre Jesus, no qual ele pensava desde há muito tempo e que o enorme sucesso daquele Renan, aparecido em 1863,seria o estímulo a colocar no nítido. Igualmente ele está mais longe de admirar sem reservas esta adulteração da figura de Cristo.
As suas aspirações profundas podem-no levar a acabar este livro da sua vida, no mesmo momento em que o absorve o enorme trabalho da redacção do seu último pensamento sobre o federalismo e o mutualismo. Tão importantes que eles sejam aos seus olhos, estes sujeitos não lhe parecem dizer a última palavra das suas investigações. Desde logo, nas “Notas e Pensamentos” da Pornocratie, redigidas por volta de 1859, ele revelava a sua questão de uma coroação espiritual: “É preciso que nós refaçamos da moral alguma coisa como um culto.” Nós podemos com as únicas forças do espírito dar uma teoria, definir o direito, formulando as aplicações… Mas substituir o coração, a alma…Nunca! Precisamos de outra coisa. É preciso regressar às fontes, procurar o divino, fortalecermo-nos numa veneração, que nos seja ao mesmo tempo uma felicidade. Nós procuramos qualquer coisa de místico, que contudo não choque a razão…mas que todavia a ultrapasse sempre”(éd.Rivière,pp.462-463,passim). Um pouco mais tarde, nas anotações da sua leitura renaniana, ele mata também “não poder escapar à obsessão do sobrenatural.” (Haubtmann,3,394).
Preocupação demasiado evasiva, que o conduz a reler Feuerbach, aparentemente esquecido desde há muito, pois o seu próprio editor Lacroix em 1864 as primeiras traduções francesas da “Essência do cristianismo e da religião.” Proudhon doente e recolhido do trabalho, precipita-se sobre estas obras que o reconduziram perto de 20 anos antes. Segundo seu hábito, ele cobre-as minuciosamente de marcas.
Suas reacções são, para o essencial, idênticas àquelas da época das Contradições e das discussões apaixonadas com os hegelianos. A atracção exercida pelo misticismo filosófico do escritor alemão ainda se sente. Mas acentua-se a hostilidade frente-a-frente da redacção ao humano demasiado fácil, quase “simplória”, segundo Proudhon operada a partir do divino. “Quanto mais eu leio e medito Feuerbach, escreve ele à margem do seu exemplar, mais eu me convenço que a religião choca qualquer mistério desconhecido.”
Não só admite doravante sem revolta que “a ordem universal compõem-se da acção de Deus e daquela do homem” (op.cit.,398), sempre mantendo o antagonismo entre uma e outra acção, o antiteísta ordena se ele não existiria entre elas algum laço secreto: “Amar, é sofrer, dizia Santa Teresa. Dar tudo a quem se ama, eis a vontade suprema. Quão grande é o coração do homem, é preciso, de todo necessário dizendo bem de Deus.” (op.cit.,401). Ele insiste sobre este “profundo mistério.” (op.cit,399).
Poder-se-à sempre falar de um sonho fugitivo, escapado de um homem no fim do seu curso. Quem ousará afirmá-lo?
Em todo o caso o mesmo já tinha primeiramente um pouco, não sonhado mas escreve o que é fazer seu último pensamento sobre um sujeito indefinidamente meditado. Ela encontra-se no texto redigido com intenção de um certo Bouteville, professor de filosofia, que lhe havia sujeito seu manuscrito sobre “A moral da igreja e a moral natural.” Texto que por esta razão Haubtmann – que a publicou pela primeira vez em extenso (Proudhon, génese de um anti-teísta, Mame1969) – intitula por esta razão o “folheto Bouteville.” Então o que o autor reclamava da doutrina exposta nomeadamente na justiça, Proudhon responde à sua argumentação, ou seja, a contar a ele mesmo.
“Eu creio que nem Boutteville, nem eu, nem os Pais, nem os ancestrais filosóficos não aprofundamos ainda suficientemente esta questão do princípio da justiça, que a igreja considera sobretudo em Deus, na sua subjectividade, e Cícero na natureza, na sua objectividade.
O que é Deus? Não se pode conhecê-lo pelas únicas forças da razão. Notamos aqui: Há em Deus pelo menos uma coisa que nós podemos com experiência afirmar, é que a sua ideia possui-nos e trabalha-nos prodigiosamente. Sobre Deus nós não sabemos e não podemos nada saber pela razão (o que ele é, etc.) mas nós julgaremos, sobre uma experiência quotidiana, que ele tinha da continuação, da ordem, da finalidade, da harmonia na natureza; uma vontade que apareça/e, que pode, que resiste, que condena, etc.”
O seguimento da passagem não é somente admirável mas perturbadora. Pela primeira e única vez sem dúvida, com esta intensidade, nós sentimos tremer? Alguma coisa que não é mais que um raciocínio, mas a uma presença forte: “Deus está disfarçado, mas mais uma vez ele está seguro que ele atormenta-nos, que a todo o momento nós acreditamos vê-lo aparecer; que ele nos parece entendê-lo a bater à porta; e que nós não nos podemos impedirmos de gritar: Quem vive? Quem está lá.”
A resposta, ignoramo-la sempre. Mas sem saber se a porta está finalmente aberta para a criança insaciável do faubourg-Bettant, afirmamos ao menos que ele a terá desejado com uma paciência furiosa.



segunda-feira, dezembro 05, 2005

Síntese Hegeliana e Equilíbrio Proudhoniano

Como Hegel, Proudhon pensa que existe no espírito como em todo o real um princípio dinâmico, uma espécie de alma motriz, graças a que tudo vive e tudo avança, tudo está em perpétua evolução:
O verdadeiro em todas as coisas, o real, o positivo, o praticável, é o que muda, ou pelo menos o que é susceptível de progresso, conciliação, transformação, enquanto que o falso, o ficticio, o impossível, o abstracto, é tudo o que se apresenta como fixo, inteiro, completo, inalterável, infalível, não susceptível de modificação, conversão, aumento ou diminuição infractário, por conseguinte, toda uma combinação superior, toda uma síntese 1 .
Mas lá cinge-se pouco a pouco a semelhança entre os nossos dois pensadores. A dialética na qual Proudhon procura dar conta deste movimento interno e reencontrar, a mimar por assim dizer o ritmo universal, não é nada a que Hegel descreveu e colocou na sua obra. A filosofia hegeliana é, saber-se, uma “vasta alquimia 2 ”, que se opera segundo um ritmo triadíco. O ser, que se procura, altera-se primeiramente no seu oposto (a tese opõe-se à sua própria anti-tese), para se reencontrar numa forma superior mais rica e mais concreta (Síntese), ela própria no princípio de um novo movimento análogo. Cada coisa à sua maneira encontra-se portanto uma vez completa, absorvida e ultrapassada, e sem deter o ser progressivo da espécie, até à síntese definitiva, que é realidade total e saber absoluto. É assim que Max tinha cumprido o seu mestre, no qual ele conservava a dialética repudiando toda a sua ontologia. Para ele também, “o que constitui o movimento dialético” é a luta de dois elementos contraditórios, até “à sua fusão numa categoria nova 3 ”.Ora, bastante deliberadamente, a dialética proudhoniana procede seguindo todas as outras vias. Ela separa-se eda dialética hegeliana em três pontos essenciais. Em primeiro lugar, enquanto que se produzem sucessivamente, só existem dois junto de Proudhon, mas em contra partida estes dois últimos termos mantém-se face a um do outro do princípio ao fim; ou seja, enquanto Hegel coloca a contradição para a “superar” em seguida, Proudhon constata a antinomia, e não pretende resolvê-la. Disso resulta, em segundo lugar, que junto de Hegel o ponto final do ritmo é a “Síntese”, enquanto que junto de Proudhon tudo se termina - tanto que se possa falar de um fim - pelo “equilibrio”. Enfim, observação capital, enquanto que junto de Hegel a Ideia está puramente imanente no processo dialético através do qual ela se procura e realiza-se, Proudhon, ele, admite um princípio de espécie transcendente, que escapa á dialética e domina todo o futuro, e que lhe é indespensável. Antinomia persistente, - transformando-se em equilibrio, - graças à acção de um princípio superior : tal são os três pontos que é preciso ver um pouco mais detalhado.
Antinomia persistente: é a primeira grande aproximação que os marxistas hegelianos fiéis, fazem a Proudhon4. Tal, por exemplo, M. Cuvillier: “Proudhon renuncia resolver as contradicções. Ele não procura superá-las… Renunciando à síntese, (ele confessa) assim o seu poder em ultrapassar os antagonismos da sociedade actual 5 ”. M. Gurwitch, pelo contrário, aluga-lhe, mas a sua constatação é a mesma: “A dialéctica de Proudhon, escreve ele, é desde o início hóstil à dissolução das qualidades e à dialéctica emanista de Hegel 6”. Ele está certo que não é lá, da parte do nosso autor a cópia desajeitada do filósofo alemão que ele teria mal compreendido (nós tinhamos visto o que ele precisava pensar de uma tal explicação). Não é mais, como o acusa Marx, poder operar uma síntese que ele teria que ter procurado primeiro. É em plena consciência que ele forja, com algumas tentativas, o seu método, modelando a sua própria dialéctica sobre a realidade do ser e do pensamento tal como ele lhe surge. Acerca disto, ele não crê criticar Hegel de uma forma explícita. Ele escreve por exemplo, na Criação da Ordem, que “a natureza, quando se abraça o seu conjunto, empresta-se também a uma classificação quaternária e a uma classificação ternária”, e que ela “emprestaria provavelmente a muitos outros, se a nossa intuição era compreensiva”, uma espécie que “a criação evolutiva de Hegel se reduzia à descrição de um ponto de vista escolhido entre mil 7”. Mais tarde, a crítica precisa-se, ao mesmo tempo que se afirma a doutrina contrária, por exemplo, neste Programa de uma filosofia popular na qual Proudhon faz preceder a sua re-edição da Justiça.
Os efeitos ternários, emprestados à natureza, são de puro empirismo… A fórmula hegeliana é uma tríade mas também o bom prazer ou erro do mestre, que conta três termos lá onde não existe verdadeiramente mais que dois, a que não viu a antinomia não se resolve mesmo, mas indica uma oscilação ou antagonismo susceptíveis somente de equilibrio. Neste ponto de vista, o sistema de Hegel inteiro seria refeito8.
Eis o nítido. A fórmula decisiva foi encontrada. Ela era cara a Proudhon, pois ele retomara-a muitas vezes, na Teoria da Propriedade 9 e na Pornocracia. Ela vinha desde já no mesmo livro da Justiça, para motivar a mesma condenação de Hegel: “A antinomia não se resolve. Lá está o vício de toda a filosofia hegeliana. Os dois termos na qual ela se compõe, balançam-se, seja entre eles, seja com outras antinomias; o que conduz ao resultado procurado.” Estes “termos antinómicos”, ou categorias opostas, não são pois chamados a se fundirem; eles “não se reduzem só aos polos opostos que uma pilha eléctrica se destruíria10”. “Qualquer transformação que eles teriam que fazer”, eles formam tantos elementos que “subsistirão sempre, pelo menos na sua virtualidade, afim de imprimir sem parar o mundo, pela sua contradicção essencial, o movimento11”. Também eles não são primeiramente, produzidos uns com os outros. Pode-se compará-los a muitos corpos simples e irredutíveis: o metafísico encontra-se diante deles como o químico diante destes corpos, e se a lógica ensina a “reduzi-los”, ele não pode agitar-se aí, só “numa operação fantástica”. Os hegelianos, com a sua “exclusiva facilidade para criar laços de parentesco entre as coisas heterógenas”, são os “alquimistas” movidos por uma quimera, como os que inventaram a pedra filosofal12. Bom para um Pierre Leroux ou um Engantin segui-los. A sua dialéctica é uma caricatura da de Hegel, ela conserva os defeitos e aumenta o ridículo. Proudhon não gosta destas “inteligências zarolhas”, “fanáticas pela unidade13”. Ele mantém energeticamente até ao fim que “os termos opostos só fazem se balançar um ao outro, já que o equilíbrio não nasce entre eles, da invenção de um terceiro termo, mas da sua acção recíproca”; breve, uma vez mais, “que a antinomia não se resolve14”.
É o mesmo que dizer que não existia só um movimento vão, um choque estéril, todo o desempenho do filósofo seria de registar? Absolutamente. O feito que a antinomia subsiste sempre não deve produzir nem cepticismo, nem desespero em todo o progresso. Com Proudhon, nós não temos o caso, como pretendia Fournière15, uma “dialéctica imobilista”, ou, como o dizia Saisset, uma “dialéctica negativa e estéril, que divide tudo por tudo, dissolve e nega por negar16”, não mais temos caso, assim como o pretendia Marx, uma espécie de hesitação ou de balanço perpétuo entre as duas teses. É interpretar o bem pelo falso, ou pelo menos o bem à superfície, antes de pensar que ele preconiza afinal de contas um ideal do justo meio “pequeno-burguês”. Na realidade, ele vê sobretudo duas espécies de movimentos se combinarem para assegurar o caminho do mundo ou do pensamento e dar-lhe o seu carácter progressivo: um produz-se no interior de cada antinomia, o outro resulta da ordenação das diversas antinomias em série contínua. “Tirai a antinomia, o progresso dos seres é inexplicável; pois onde está a força que produziria o progresso? Tirai a série, o mundo não é só uma mistura de oposições estéreis, uma ebulição universal, sem princípio e sem ideia 17.” Mas o espectáculo que oferece o universo a quem sabe investigar o enigma é justamente aquele de uma luta fecunda, é aquele de uma estimulação recíproca, de um montado em espiral. Por um fluxo e um re-fluxo incessantes, tudo avança, ou antes, tudo sobe. Nenhum valor se perde, nenhuma força é eliminada do combate; cada um demora por si e toma à sua maneira sobre a outra sua vingança; cada qual engana-se, transformando-se tudo, pela sua luta com a força contrária. Uma e outra, em vez de limpar-se ou dissolver-se, exaltam-se recíprocamente.
Num só sentido portanto,”está tudo por recomeçar”.”O povo escreve Proudhon, queria acabá-lo; ora, eu repito-vos, não existe fim18.” Mas num outro sentido, existe progresso real. Ele teria podido dizer com Blake: “Sem contrários, não existe progresso; atracção e repulsão, razão e energia, amor e ódio, são igualmente necessários à existência humana19.” A guerra não é somente um facto social, exterior, que se observa sobre os campos de batalha ou também na “arena da indústria”; ela é um facto interior, que é necessário estudar “na consciência da humanidade20.” Se, como o facto exterior, ela deve ser suprimida, como o facto interior ela é “uma das principais categorias da nossa razão”, e da nossa razão especulativa assim como da nossa razão prática. Ela é uma categoria permanente. Não chegamos portanto de um estado absoluto de paz, que seria o fim do mundo e a morte do pensamento21. Mas se a guerra, neste sentido, não pode ser “abolida”, ela pode entretanto, e deve ser “transformada22”. Uma paz deve estabelecer-se na permanência do antagonismo. Este, que é preciso aceitar “como lei da humanidade e da natureza”, não é necessariamente destruição recíproca, mas “tem como objectivo a produção de uma ordem sempre superior, de um perfeccionismo sem fim23”. É preciso que ele se mude na “recíprocidade24”. Numa alma mestra de si mesma, numa sociedade bem ordenada, as forças não lutam só um momento para reconhecerem-se, controlarem-se, confirmarem-se e classificarem-se25, e “existe neste conflito de pensamentos humanos”, como naqueles elementos do mundo, “uma força organizadora26”.
Tal deveria ser também a dialéctica social, se o homem usava razoavelmente a sua liberdade. Proudhon qualifica o seu método de “método de invenção revolucionária 27”. Segundo o que está para um e para outro dos dois momentos do seu ritmo, - destes dois momentos nos quais, diz ele, coloca-se “todo o verdadeiro pensamento 27”, - ele aparece destruidor, ou edificador; subversivo, ou conservador. Ele parecia contradizer-se constantemente. Na controversia que ele mantém com ele em 1849, Bastiat troçava. “Crê em mim, Senhor, responde-lhe ele, existe sempre pouca glória a adquirir, para um homem de inteligência, rir das coisas que ele não entende 28”. É bem verdade que os seus excessos de linguagem, num ou noutro sentido, dariam pretexto a este rir. Mas na realidade, todavia, ele é conciliador. “Toda a minha filosofia, diz ele não sem justiça, não é só uma perpétua reconciliação 29”. E diante do supremo tribunal de justiça, a 28 Março 1849, ele declara: “O socialismo é a doutrina da conciliação universal 30”. Junto dele, os termos antitéticos, empurrados um depois do outro como absolutos, são seguidamente re-integrados e reconhecidos igualmente necessários, provido para que eles se limitem e se corrijam. A sua oposição tornava-se mesmo a sua justificação. Para emprestar alguns exemplos ao mundo económico, o “monopólio” e a “concorrência”, o “trabalho” e o “consumo”, a “propriedade” e a “sociedade”. Tais “actividades individuais” e a “autoridade social”. “o que a concorrência está ocupada a fazer sem parar, o monopólio está ocupado a desfazê-lo sem parar; o que o trabalho produz, a consumação devora-o; o que a propriedade se atribui, a sociedade apara; e daí resulta o movimento contínuo, a vida infalível da humanidade”. “Não é um princípio, uma força na sociedade, que não produz mais miséria do que riqueza, se ela não é balançada por uma outra força do qual lado útil neutraliza o efeito destruidor da primeira 31”. Se uma das duas forças antagónicas está entravada, a actividade individual, por exemplo, socumbe sob a autoridade social, a organização degenera no comunismo e termina no nada. “Se, por outro lado, a iniciativa individual vem marcar o equilibrio, o organismo colectivo corrompe-se, e a civilização arrasta-se sob um regime de raça, de vício e de miséria 32”. Ordem e liberdade, socialismo e ciência económica, Estado e propriedade: outros exemplos destes pares dos quais Proudhon nos diz que “a acção recíproca” - e, acrescenta, “eu diria quase a ameaça mútua” - assegura o equilibrio vivo da sociedade 33. O Estado e a propriedade são alternadamente o objecto das sentenças de condenação mais radicais; mas eles tornam-se correlativos, então, não podem ser mais definidos pela “soma dos seus abusos 34”, mas sobretudo pelo desempenho moderador recíproco, e mesmo o que ele tem de abusivo neles pode tornar-se alguma espécie legítima se é necessário para este desempenho. A propriedade, nomeadamente, aparecia então no seu “destino altamente civilizador”; se o Estado é “o regulador da sociedade”, ela é a “grande mola”; penhora à sua origem, ela é um principio “vicioso e antisocial”, mas ela não pode tornar menos, com o concurso de outras instituições, “o eixo e a grande mola de todo o sistema social” e o “equilibrio” salutar que impede o Estado em tornar-se tirânico 35
Os significados que traduzem esta conciliação que é o verdadeiro ideal proudhoniano, segundo os pontos de vista diversos, são “justiça, igualdade, equação, equilibrio, acordo, harmonia 36”. Em cada um destes sinónimos “ encontram-se unidos a consciência e o entendimento, razão prática e razão especulativa, o real e o ideal, a lei do universo e a lei da humanidade 37”. Na Criação da Ordem, Proudhon, que já previa o seu método, dizia: “o balanço 38”, e retomará a expressão nas suas obras posteriores 39. É a Fourier que ele deve o significado de harmonia, a Fourier, ele diz, "artista, místico e profeta 40”. Ele próprio fala também da “melodia dos seres 41”. Mas o significado mais geral é o do equilibrio. Na Celebração do domingo, Proudhon evocava terminando “o equilibrio geral” que devia enfim, suceder “ao mais furioso antagonismo 42”. Mais tarde, ele escrevia que estas Contradicções económicas não são outra coisa que uma “operação de equilibrio 43”, e é ainda um “equilibrio geral dos Estados” que ele proposera como “sistema político da humanidade 44”. Somente, anotaremos bem, um tal equilibrio não é realizado uma vez por todas, não é uma “ordem” morta, esta ordem na qual “os nossos burgueses” são “amorosos até à raiva 45”. É um “equilibrio na diversidade 46”, e é um “equilibrio incessante 47”, isso, não tanto porque está sempre em vias de melhor se estabelecer. Verdadeiramente, sobretudo “equilibrio 48 ”, ou seja, equilibrio activo, dinâmico, onde a contradicção se torna em tensão. Como os nossos corpos materiais, o organismo espiritual e o organismo social têm necessidade de certos elementos que, em estado puro, seriam as poções, mas que, se corrigem e se unem um ao outro, conservando o movimento da vida 49 .
Mesmo que ele se agite no mundo social, o nome por excelência do equilibrio assim realizado (ou sobretudo realizando-se) pela dialéctica será a justiça. Só nele, este significado introduz-nos numa esfera nova. Pois a justiça talvez considerada sob dois aspectos. Ela é o próprio benefício ao qual se deve chegar, e é neste sentido que ela é também, ou acima de tudo, ela é desde já, o principio que assegura a realização deste beneficio. Dizemos, servindo-nos de uma fórmula que não é a de Proudhon mas que se assemelha be traduzida, ao seu pensamento, que ele tem uma “justiça justificante” e uma “justiça justificada”, ou, para empregar um sentido diferente dos termos de M. Lalande, uma “justiça constituinte” e uma “ justiça constituída 50 ”. Ora a segunda só é possível pela intervenção da primeira. Além, ou debaixo das suas agitações antinómicas, existe a consciência, lugar destas agitações, que não pode melhor definir-se como uma exigência da justiça. No objecto, tudo é antinómico: também Proudhon pode declarar de boa fé que ele rejeita todo o absoluto, todo o elemento que seria então sério, não submisso à engrenagem dialéctica, toda a realidade transcendente. Não é menos verdade que a este complexo objecto e inquieto de contradicções é necessário, como para uma matéria, impõe-se uma forma, para tirar uma harmonia. Esta forma, é a justiça. Ora la não pode ser um simples resultado. A dialéctica é um processo que deve ser colocado na obra e orientado. Ele é-o porque nós o nomeamos a “justiça justificante”, e é assim que a justiça, antes de aparecer como o equilibrio obtido, revela-se como o mesmo principio deste equilibrio.
Nas suas obras, Proudhon nunca expôs esta doutrina; só de uma forma confusa. Que tal seja bem entretanto a ideia que, mais ou menos obscoramente, o guia, não saberia duvidar apesar de ele reler o conjunto dos textos. É explicar, por outro lado, um dia, na carta ao seu amigo Langlois. Este tinha acreditado poder falar depois dele, ao longo de um artigo que o consagrara, de “antinomia da justiça”. Proudhon responde-lhe, a 30 de Dezembro de 1861, que ele encontra acerca deste ponto a sua redação , e talvez o seu pensamento incorrecto:
Ele está bem seguro que a ciência do direito, como o da economia política, como a metafísica, etc., papel sobre as perpétuas antinomias; neste sentido, a vossa expressão justifica-se, e o vosso artigo faz muito bem compreender em que consiste, no direito da guerra e das gentes, a antinomia. Mais fundo, esta antinomia não vem da mesma justiça; a consciência não é a antinomia da sua natureza, como o entendimento. Não existirá nada de moral positiva se assim fôr, e nós deveríamos afastarmo-nos ou deixar fazer os Maltusianos. A Justiça, em si, é a balança das antinomias, isto é, a redução ao equilibrio das forças em luta, a equação, num só significado, das suas pretenções respectivas. É por isso que eu nada tomei como divisa da liberdade, que é uma força indefinida, absorvente, que se pode apagar mas não convencer; eu coloquei debaixo dela a Justiça, que julga, regula e distribui. A liberdade é a força da colectividade soberana; a Justiça é a sua lei 51.
Neste reconhecimento de uma moral absoluta, de uma norma não dialéctica que se impõe à liberdade, nós temos o último tratado que diferencia radicalmente o método, e do mesmo lado, a doutrina proudhoniana, das de um Hegel ou de um Marx. Proudhon não pode admitir esta teoria hegeliana da guerra e do direito da força, que, diz ele, desonra a filosofia ao misturar o bem e o mal, o verdadeiro e o falso 52. Ele fala, também, de um certo “direito da força”, mas não é com o mesmo sentido. Ele aborda Hegel de não ter sabido dar “uma teoria forte e verdadeira da liberdade e da justiça, sem a qual existe vergonha e degradação para o homem 53“. Num progresso que não seria mais que um processo fatal e não “o efeito do nosso livre arbitrio”, ele recusa-se a ver um progresso real 54. A sua moral não quer ser nem relativista, nem oportunista. Permanece um sistema com termos do qual “a distinção do bem e do mal não tem nada de absoluto” e ele não deixa impôr reflexões sobre a evolução universal e sobre a história do mundo para abdicar da dignidade do homem individual. É ainda lá um aspecto desta personalidade, que aparece a Kierkgaard no Post-Scriptum 55.
Uma segunda carta a Langlois faz-nos fazer um pouco mais. Respondendo a Proudhon, o seu amigo tinha afluído no seu sentido e desejado até a ir mais longe” que ele. Parecia-lhe, no fundo, dizia ele, “que o entendimento não é mais antinómico, no fundo, a consciência”. Está lá, diz Proudhon, o meu próprio pensamento: “o principio da Justiça, para a consciência, e o mesmo que o principio da igualdade ou da equação para o entendimento”, e é neste principio que se restabelecem todas as operações intelectuais. Assim a antinomia e a equação são bem duas formas do entendimento, mas a primeira tem por fim a segunda, e esta não tem portanto mais nada de antinómico; “aliás não existiria certeza, verdade, e o pensamento não seria mais que uma eterna balança”. É necessário pois admitir afinal de contas “que o entendimento, como a consciência, bem compreendida, abraça todas as antinomias, não pode nem deve ser dita antinómica 56”.
Este esboço improvisado de uma teoria de inteligência não é de nenhuma clareza. Pelo menos, a intenção está nela manifestada. Depois da consciência moral, e pela mesma razão, é a própria inteligência que emerge da dialéctica. Estão do mesmo lado, todas as categorias essenciais, todas as grandes ideias, “forças puras, primeiras faculdades e criadoras”, que constituem por assim dizer, a base. “Elas estão, por natureza, sem sistema e fora de série 57.” Elas são o próprio espírito, na sua unidade.
Proudhon tem visto portanto, que o Uno, princípio de toda a união como de todo o equilibrio, príncipio de harmonia universal, está fora do género. É necessariamente, dizia o ancião filósofo, “um transcendental”. Ele não saberia encontrar-se numa síntese, obter uma síntese. Ele não é o objecto nem o resultado: ele é o príncipio e a forma. “Nisso, conclui proudhon, consiste a pessoa humana 58”.
Se ainda nós atirarmos um olhar ao conjunto sobre a dialéctica proudhoniana e à visão do mundo que ela supõe, nós seremos conduzidos antes em reconhecer que, tanto e mais que uma dialéctica, ela é uma fenomenologia. Para ela, efectivamente, as antinomias “são todas as contemporâneas, mesmo que elas se primem e se subalternem alternadamente 59”. Ela visa reduzir menos as oposições aparentes ou momentâneas, do que colocar em destaque tudo, transformando-as e organizando-as entre si, as originalidades irreductiveis e contrastantes. Pressente-se a ideia husserlina de uma série de valores heterógeneos, impossíveis de hierarquizar, na qual a coexistência é uma fonte de conflitos indefinidos. Mais, em todo o caso, naquele de um Hegel, esta filosofia é dramática. Sobretudo aquela de inúmeros hegelianos, junto dos quais as intuições do mestre tornam-se em fórmulas, e a sua dialéctica, um procedimento. Enquanto que estes “escamoteiam os conflitos ao ritmo ternário de uma valsa dialéctica 60 “. proudhon olha face a um undo que nenhuma operação de alguma espécie não pode reduzir a uma fórmula definitiva, e ele traduz a sua intuição pela palavra biblíca: “O Eterno é um guerreiro 61”. Contra todos os sistemas que mecanizam o progresso e negam a iniciativa humana no seio de um imenso desenvolvimento racional, ele conserva “o sentimento inextirpável da actualidade criadora 62”. Comparámo-la a Leibniz, cuja doutrina monádica despertava efectivamente as suas simpatias 63. Aproximou-se a sua dialéctica da de Fichte, concebendo um e a outro como uma “via ascendente contra a intuição de uma totalidade de elementos irreductíveis 64”. Sublinhou-se o paralelismo do seu papel com o de Kiekegaard perante Hegel e com o de Bakounine perante Marx 65. A seguir a Sainte-Beuve 66, chamou-se o seu parente de espírito com Pascal 67. Outras aproximações poderiam ser esboçadas. Todos têm a sua verdade. A todos eles, (eles) mostram que se teria injusta, sobre o mesmo plano da filosofia, de nigligenciar o pensamento de Proudhon.
Não mais que toda uma outra, as obscuridades, as dificuldadesinternas não faltam a este pensamento. Pode-se pedir, por exemplo, em que consiste o benefício do “equilibrio” à “série" ou o da consciência às antinomias. Pode-se procurar como se juntam numa mesma explicação o ritmo necessário do universo físico ou do pensamento, e o ritmo do universo moral e social, onde a liberdade intervêm 68; como “o sistema das leis da Justiça é a mesma coisa que o sistema das leis do mundo 69”; de que “ponto de vista superior” “o homem e a natureza, o mundo da liberdade e o mundo da fatalidade”, “apesar de algumas dissonâncias, mais aparentes que reais”, “formam um todo harmónico 70”. Pode-se estimar também que Proudhon abusa do recurso à ideia dialéctica para permitir muitos exageros sucessivos e opostos 71; existe nas suas explicações um paradoxo verbal, como também existe no procedimento nos territórios hegelianos. É inegável, enfim, que este pensamento todo ele concreto, repugna habitualmente, no seu vigor, as análises pacientes e bem delimitadas, numa espécie em que a maior parte das noções que ela emprega, sobretudo a da justiça, cobrem um campo tão vasto e tão movimentado que é por vezes penoso reconhecer-se na confusão das suas significações analógicas. Se se quiser continuar a discussão até ao fim, talvez seria necessário examinar ainda se a ideia de “conciliação”, a que Proudhon expõe e coloca na obra, não contém qualquer equívoco, inclinando ora para a síntese e ora para o compromisso; examinar, por outros termos, se esta dialéctica triunfa plenamente em “resolver o conflito sem suprimir a tensão 72”; se esta filosofia que nós chamamos dramática triunfa ao escapar ao trágico puro 73 tanto que ela descança num optimismo a bom caminho e recusa igualmente considerar uma última solução onde a oposição superada; se ela não pretendia servir de justificação dialéctica a uma “revolução permanente” concedida como uma série sem fim destas “agitações” que Proudhon nunca tinha aprovado 74… sobretudo, como acordar a rejeição tantas vezes professada em toda a transcendência, ao inicio como o termo do movimento dialéctico, com a pretensão de impôr a este movimento uma norma e assinalar-lhe um fim?
Mas estas dificuldades e, se se desejar, estas contradicções não devem, entretanto, fazer-nos concluir o “completo insucesso” nem, na mais forte razão, o “nada completo” do método proudhoniano, como o fez F. Pillon com muita injustiça 75. Elas não autorizam a confundir a sua dialéctica com os “procedimentos de sofista 76” ou a tratá-la de “mistificação 77”. Elas constituem sobre tudo, diremos, resgate de um pensamento que não se resigna em encerrar, apesar das suas ilusões, no futuro e na imanência. Marx pode bem ridicularizar Proudhon de ter feito das categorias económicas, essencialmente transitórias, “expressões teóricas das condições de produção material de uma certa época”, as “ideias que teriam pré-existido em toda a eternidade”; ele pode bem, alargando a sua crítica, ver no seu adversário uma “vítima da ilusão especulativa”, incapaz de compreender “o movimento histórico que pertuba o mundo actual”, e o lamenta de ter penetrado pouco “no mistério da dialéctica 78”. Por mais desprezador que ele se revele, este julgamento é-nos precioso. Constatando os mesmos factos, nós podemos pelo contrário estimar que Proudhon, se ele não tem grave poder de Marx, não foi no mínimo como ele, victima de ilusão dialéctica, que ele soube reconhecer a espécie da eternidade de todo o que este homem tem de essencial no seu entendimento e na sua consciência, e que assim, sem penetrá-lo, ele pressentiu mesmo o mistério ontológico. As suas soluções, na medida onde elas existem, não nos satisfazem nada, mas pelo menos com ele, como nós veremos mais detalhadamente no último capítulo, os problemas essenciais são e permanecem colocados. As suas negações nunca são definitivas. Os seus julgamentos mais peremptórios não acarretam toda a retomada. No momento que nos vem chocar, a sua dialéctica faz de si o nosso aliado contra si mesmo, não talvez a mais verdadeira. Sempre, consigo, a discussão permanece aberta.






NOTAS


1 Filosofia do progresso, p.21.
2 Émile Bréhier, História da filosofia, t.2, p.746.
3 Miséria da filosofia, tr. fr.(1896),p.155.
4 Cf. Marx, loc.cit.: “Proudhon está atónito de esterilidade quando ele se agita em produzir o trabalho de produção dialéctica na categoria nova”. E p. 150: “M. Proudhon, apesar da grande pena que ele tomou em escalar a altura do sistema das contradicções, nunca pode elevar-se debaixo dos dos primeiros escalões da tese e da antitese siples, e ainda os transpôs duas vezes, e, estas duas vezes, ele caiu uma vez para trás…”
5 À luz do marxismo, t. 1, p. 181 e 182.
6 A ideia do direito social, p. 333.
7 Criação da ordem, p. 162.
8 Justiça, t. 1, p. 211. Comparar a sátira de Renouvier sobre “este método desastroso dos agrupamentos, das aproximações e dos encadeamentos de termos ternários, por meio daquela, substitui-se tudo o que o vulgar apela definição e prova, uma combinação artificial e sempre artificial de vocábulos, determinados em aparência uns pelos outros, e portanto bastante vagas para se sujeitar a todas as necessidades. Quantos investigadores improvisados do verdadeiro dogma são imperfeitos os Orfeus da religião e da filosofia do futuro, porque eles sabiam jogar, sem nunca ter aprendido este instrumento fácil e agradável, e eles não se metiam em pena de sons todos diferentes como eles os entendiam dar entre as mãos dos seus rivais! O inventor Hegel havia tirado as melodias mais sábias, etc.” Introdução à filosofia analítica da história (1864), p. 154-155.
9 Teoria da propriedade (1866), p. 206.
10 Teoria da propriedade, p. 52.
11 Confissões, p. 316. Capacidade política, p. 200. Cf. R.Aron e A.Dandieu, A revolução necessária (1933), p. 163: “A síntese, é o fim do movimento, é, pensá-lo bem, a forma social da morte.”
12 A Monard, 31 Dezembro 63 (t. 13, p. 213-214).
13 Teoria da propriedade, p. 212.
14 Pornocracia, p. 122-123.
15 As teorias em França no séc. XIX, p. 375.
16 As escolas filosóficas em França. Revista dos Dois Mundos, Agosto 1850, p. 675.
17 Miséria, t. 2, p. 396.
18 A Langlois, Dezembro 51 (t. 4, p. 157).
19 Blake, Casamento do Céu e Inferno, debate.
20 A. M. X., 5 Junho 61 (t. 11, p. 112).
21 Guerra e Paz, p. 33, 341 e 486.
22 Op. cit., p. 49 e 56.
23 Op. cit., p. 482-483.
24 Cf. solução do problema social, Programa, 31 Março 1848: “Mesmo que a vida suponha a contradicção, a contradicção por seu lado, apela à justiça: daí a segunda lei da criação e da humanidade, a penetração mútua dos elementos antagonistas, a Reciprocidade.” (p. 92).
25 Guerra e Paz, p. 134.
26 Justiça, t. 3, p. 256.
27 Confissões, p. 177.
27 Miséria, t. 2, p. 396.
28 Carta a M. Bastiat, 3 Dezembro 49 (na Bastiat, Obras, t. 5, p. 147).
29 Miséria, t. 1, p. 368. Cf. p. 72: “A verdade encontra-se, não na exclusão de um dos contrários, mas na conciliação dos dois”. Proudhon acrescenta, em linguagem hegeliana, que eles deviam ser “absorvidos” um e outro “numa fórmula mais complexa”. É o caso de nos lembrar da nota de M. Gurwitch, A ideia do direito social, p. 331: “Quanto ao fundo do seu pensamento, aqui como algures, ele serve exclusivamente o seu próprio caminho e considera as antinomias como irredutiveis.”
30 Cf. Berthod, na Ideia da Revolução, p. 29. No primeiro capítulo da Miséria, a propósito da oposição da economia política e do socialismo, a ideia e o significado de conciliação surgem muitas vezes. Mas o que “ele se agita para descobrir”, é “uma lei superior”, é “uma fórmula de conciliação superior às utopias socialistas e às teorias mutiladas da economia política”, não existe portanto “o parar num meio arbitrário justo, insassiável, impossível”. (t. 1, p. 78, 79, 81).
31 Justiça, t. 2, p. 131.
32 Miséria, t. 2, p. 396.
33 Guerra e Paz, p. 498. Cf. Miséria, t. 2, p. 391: “O socialismo tem razão em protestar contra a economia política e dizer-lhe mesmo: Vós não sois mais que uma rotina que vós mesmos não entendeis. E a economia política tem razão em dizer ao socialismo: Vós não sois mais que uma utopia sem realidade nem aplicação possível. Mas um e outro negam sucessivamente, o socialismo, a experiência da humanidade, a economia política, a razão da humanidade, todos os dois faltam às condições essenciais da verdade humana.”
34 Cf. O que é a propriedade? p. 128: “M. Blanqui reconhecia que existe na propriedade uma loucura de abusos, e de odiosos abusos; do meu lado, eu chamo exclusivamente propriedade à soma destes abusos.” (Prefácio à 2ª Edição, 1841). Sabia-se, da propriedade assim entendida, Proudhon distingue expressamente a possessão.
35 Teoria da propriedade, p. 173 e 208. “Se se estuda nas suas consequências politicas, económicas e morais o poder essencialmente abusador da propriedade, desfaz-se nesta união de abuso uma funcionalidade energética, que acorda imediatamente no espírito da ideia de um destino altamente civilizador, também favorável, mais ao direito do que à liberdade.” Cf. Justiça, t. 3, p. 264: “Eu entendo não suprimir nada do que eu tinha feito decididamente a crítica”, (mas eu desejo) “colocar cada coisa no seu lugar, após ter censurado o absoluto e balançado com as outras coisas”. E Capacidade política, p. 200, a propósito da liberdade e da unidade ou ordem, etc.: “Não se pode nem separá-los, nem absorvê-los um ao outro; é preciso resignar-se para viver com os dois, equilibrando-os”.
36 A Bergmann, 15 Novembro 61 (t. 11, p. 286). Teoria da propriedade, p. 217. 37 A Bergmann, 15 de Novembro de 61 (ibid.)
38 Criação da Ordem, p. 213.
39 Justiça, t. 2, p. 60, 95, 131, t.4, p. 432. Teoria da propriedade, p. 206. Pornocracia, p. 232, etc.
40 Capacidade política, p. 193. Cf. Guerra e Paz, p. 134: “A oposição das forças tem pois como fim a sua harmonia.”
41 Miséria, t. 2, p. 396.
42 Domingo, p. 96. Nesta página, Proudhon sonha ainda um dia onde “o problema social será absoluto”, onde “da mistura de todas as doutrinas nascerá a ciência una e indivisível”, onde o homem poderá exclamar: “os tempos de prova são finitos, a idade de ouro está diante de nós”. Mas talvez não é necessário ver que um pedaço de bravura, mais ou menos imposto pela lei do género. Nesta dissertação apesar de académica, ela é uma espécie de analogia da “vida eterna” dos predicados.
43 Teoria da propriedade, p. 217.
44 Guerra e Paz, p. 497-498.
45 Justiça, t. 3, p. 256.
46 Domingo, A Criação da Ordem falará igualmente da “intuição sintéctica na diversidade”, da “totalização na divisão” (ed. Lacroix, p. 210-15).
47 Teoria da propriedade, p. 52.
48 Op. cit., p. 206.
49 É o que Proudhon explica ao cardial Mathieu, Jutiça, t. 2, p. 94-95: “Dizei-me, Meu Senhor, o que vós fuméis ou respiréis no tabaco, que cós prováis no Kirsch, que vós coméis no vinagre, não são os peixes, e os mais violentos de todos os peixes? Bem, ele é assim em alguns principios que a natureza tem misturado em nossas almas, e que são essenciais á constituição da sociedade: nós não poderíamos existir sem les; mas por pouco nós entendemos ou concentramos a dose, alterámos a economia, nós morremos infalivelmente por eles. De outro modo, no regime de balança e de falsos pesos onde nós vivemos, a divisão do trabalho é funesta ao operário, a concorrência desastrosa, a especulação vergonhosa, a centralização humilhante, eu acrescento que a propriedade é imoral e funesta. Como a amêndoa amarga, reduzida pela análise química à pureza do seu elemento, tornando-se ácido prússico, assim a propriedade, reduzida à pureza da sua noção, é a mesma coisa que o roubo. Toda a questão, para o emprego deste elemento temível, é, repito-o, encontrar a fórmula, num estilo economista, a balança…”.
50 Comparar com a doutrina platónica da alma como “harmonizante” ou como “harmonizante” ou como “harmonia aplicada”: Cf. P. Lachière-Rey; As ideias morais, sociais e políticas de Platão, p. 62.
51 T. 11, P. 308.
52 Guerra e Paz, p. 107.
53 Justiça, t. 3, p. 504.
54 Ibid. “Diz-me enfim… que ideia eu posso ter do progresso, quando de todas as vossas palavras resulta que eu não sou mais que uma marioneta?” (P. 502). Sem dúvida Hegel pretende que a história da liberdade; mas a sua liberdade não difere no fundo da necessidade; ela é a força obstinada que possui o organismo intelectual, ela é o movimento orgânico do espírito. Hegel não admite mais a liberdade do que Spinoza. (P. 499-501).
55 Cf. Kierkgaard, Post-Scriptum (trad. Paul Petit).
56 17 Janeiro 62 (t. 11, p. 349-350). E já lá, diz ele, o “pensamento fundamental” do novo prefácio que ele vem colocar na Justiça (re-edição de Bruxelas).
57 Revolução social, p. 55. Desde já, na conclusão da Miséria, t. 2, p. 388, Proudhon escrevia: “A profundeza dos céus não iguala a profundeza da nossa inteligência, no seio da qual se movem maravilhosos sistemas… Lá pressente-se, chocam-se, balançam-se forças eternas…”: e p. 395: “ As ideias, iguais entre si, contemporâneas e coordenadas no espírito, parecem atiradas para a confusão, dispersas, localizadas, subordinadas e consecutivas na humanidade e na natureza, formando quadros e histórias sem igual com este desenho primitivo; e toda a ciência humana consiste em reconhecer nesta concepção o sistema abstracto do pensamento eterno: “Assim, escrevia ele a Paul Armenkov a 28 Dezembro de 1848, a força da subtilidade, o rapaz adere a descobrir o pensamento de Deus…”
58 Loc. cit.
59 A M. Clerc, 4 Novembro 63 (t. 13, p. 343).
60 Aron e Dandieu, A revolução necessária, p. 160.
61 Exôdo, 15, 3. Colocado no exergo na Guerra e Paz.
62 Aron e Dandieu, op. cit., p. 161.
63 G. Gurwitch, A ideia do direito social, p. 334.
64 Gurwitch, op. cit., p. 333. Sobre a forma na qual Proudhon teria podido subir a influência de Fichte por intermédio de Krause e d’Ahrens: ibid., p. 336-337.
65 Aron e Dandieu, op. cit., p. 155-156 e p. 161. Cf.Torsten Bohlin, Kiekegaard: “Kiekegaard acentua muito e sem deixar o carácter combativo da vida da personalidade. A tese de Herades sobre a discórdia produzindo todas as coisas passa na concepção kiekegardiana da transformação e das condições vitais da personalidade.” (P: 87).
66 P.-J. Proudhon, p. 223.
67 Roger Picard, na Miséria, t. 1, p. 28-29. Jean Lacroix, Itenerário espiritual, p. 81. Miguel de Unamuno, A agonia do cristianismo, tr. fr., p. 117.
68 Cf. Justiça, t. 4, p. 431-432: “Então, a ideia de uma harmonia universal entra na minha alma; eu digo a mim mesmo que entre o mundo da natureza e o da Justiça, lei, força, substância, tudo é idêntico; que assim, como a ordem é perfeita entre as esferas que percorrem o espaço; a proporção imutável entre os elementos nos quais se compõem toda a criação, ele deve estar mesmo entre os homens. E o facto vem em seguida confirmar a hipótese. A economia, a política, a organização do atelier, a Razão pública, resolvem-se num sistema de ponderações ou de balanços; nesta analogia de legislação entre o Cosmos e o Anthrôpos aparece a identidade de espírito que os anima, latente no primeiro, livre no segundo.”
69 Ibid., p. 433: “O universo está estabelecido sobre as leis da Justiça; a Justiça é organizada após as leis do universo, etc.” A Chaudey, 15 Janeiro59: “Lei do homem e da natureza” (t. 8, p. 350): Justiça, Notas e esclarecimentos: “A Justiça é a lei fundamental do univeso”. (t. 2, p. 298).
70 Justiça, t. 2, p. 389.
71 A sua dialéctica surgia aqui como a transpiração abstracta do seu temperamento. É o caso de nos lembrar o que ele escrevia um dia, a 15 de Abril 61, a Rolland: “Comigo, é sempre necessário corrigir, interpretar uma excentricidade por uma outra, se quiser ter o verdadeiro pensamento e o verdadeiro carácter do homem.”
72 A expressão é de M. Jean Lacroix, Pessoa e Amor, p. 44.
73 Sobre a noção do trágico: Georges Didier, Valores trágicos e valores cristãos, na Cidade Nova, 10 Outubro 1942.
74 Que o espírito proudhoniano seja elogiado de todo o “trotskismo”, é também o que resulta do desprezo que sufoca Trotsky no seu percurso. (Cf. Trotsky, Defesa do Território, tr. fr., p. 53-54.
75 A Crítica filosófica, t. 2 (1872-73), p. 379. A propósito da “grande síntese” revista e anunciada por proudhon, o autor fala ainda de uma “nuance do ridiculo” e de uma “nuance de charlatanismo”, no que não devem dissimular-nos o sério esforço proudhoniano.
76 Renouvier, Filosofia do século XIX, no Ano Filosófico, 1867, p. 74.
77 Edmond Scherer, cruzamento da crítica religiosa, p. 510. Talvez se aproximasse a Proudhon com mais justiça em não ser sempre fiel a si mesmo, a alma do seu método. Porquê, por exemplo, metia-se ele no reboque de Machiavel e de Rousseau, como nós o tinhamos visto no capítulo precedente, para impelir da distinção evangélica do temporal e do espiritual na sociedade? Como é que ele não viu que existe, “nesta mesma tensão” entre os dois poderes, ”uma salvaguarda preciosa da pessoa humana e dos seus interesses superiores”, bem mais ainda na tensão que ele destinava a este mesmo fim entre governo e propriedade? O problema não deve ser em procurar qual poder asseguraria o outro ou o absorverá para lhe acrescentar as prerrogativas aos seus próprios, mas como a “guerra” entre eles poderá transformar-se em “harmonia” para uma colaboração fecunda. Cf. Joseph Lecler, A Igreja e a soberania do Estado, na Construcção, 1942.
78 Marx, comentando a sua própria obra contra Proudhon (citado por Otto Ruhle, Karl Marx, p. 117-118). Cf. a carta desde já citada a Paul Armenkov: “As categorias económicas… são para M. Proudhon as fórmulas eternas que não têm nem origem nem progresso, etc.”; o antagonismo que ele crê descobrir não é só mais que a sua própria “incapacidade em compreender a origem e a história profana das categorias que ele diviniza”. Reconhcer-se-ia de outro modo facilmente o método marxista, com todos os seus partidos tomados, permanece um instrumento mais eficaz que o método proudhoniano para a análise de evolução social. Mas esta análise não é tudo.