sábado, março 18, 2006

Rotular como forma de arte

A forma predominante de dominação ideológica já não é o encobrir dos factos, um estratagema bastante primitivo, usado pelas ditaduras. Hoje, a dominação faz-se muito mais pela capacidade de nomear. As pessoas não pensam nas coisas, pensam nos rótulos. Boa parte do jornalismo contemporâneo tornou-se uma grosseira arte de rotular.À lei que define que os recursos públicos devem ser prioritariamente usados para pagar juros ao sistema financeiro, em detrimento de todos os demais gastos do Estado, rotula-se "lei de responsabilidade fiscal". À prática de cortar gastos essenciais, para sustentar esses mesmos pagamentos, chama-se "disciplina" ou "austeridade", necessárias para formar um "superávit" metafísico (denominado, inteligentemente, "superávit primário"). Ao desmenbramento dos mecanismos de defesa de uma economia periférica e frágil rotula-se "abertura". Aos efeitos do desvio de finalidade das contribuições sociais – recolhidas pelo Estado, conforme a Constituição, para financiar o sistema de Segurança Social – rotula-se "déficit da Previdência".Os meios de comunicação difundem esses chavões e, pela repetição, incorporam-nos na linguagem comum. Feito isso, não há mais debate possível. Quem pode ser contra "responsabilidade", "disciplina", "austeridade", "abertura", "superávit", coisas evidentemente tão boas? Quem se habilita a defender, a sério, "irresponsabilidade", "indisciplina", "gasta", "fechamento" e "défice"?Em plena vigência de um regime político que garante liberdade de imprensa, paradoxalmente, quase ninguém tem acesso aos conteúdos das questões. Tudo fica paralisado nos rótulos, usados para bloquear sistematicamente o pensamento.Essa prestidigitação semântica, que sustenta a ideologia económica dominante, é imensamente frágil. Poderia desfazer-se por meio de um simples acto de renomear. Os pontos de vista seriam automaticamente modificados, por exemplo, se trocássemos o nome da "lei de responsabilidade fiscal" para "lei que define que pagar juros ao sistema financeiro é mais importante do que investir em serviços essenciais". Os exemplos poderiam multiplicar-se.Só quem controla os meios de comunicação pode nomear e renomear de forma eficaz. O esforço de pensamento, voltado para ultrapassar a rotulagem e penetrar no conteúdo das questões, torna-se a obrigação de quem rema contra a maré. É muito mais fácil navegar no bom senso dos rótulos. Um dos princípios da lógica de Leibniz é o da unidade dos indiscerníveis: se não podemos estabelecer diferenças entre duas coisas quaisquer, devemos admitir que elas são uma só. A luta política que se trava hoje em Portugal e desde há uma geração é apenas uma guerra de grupos pelo controle de verbas e nomeações, que motivam os negócios. O projecto para o país é o mesmo.

http://resistir.info/brasil/arte_de_rotular.html

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