sexta-feira, junho 30, 2006

No que deu a democracia nos Estados Unidos

Nestes últimos seis anos a democracia americana tem dado grandes pulos e tem conseguido aquilo que muitos pensavam ser impossível. Na democracia norte-americana não é necessário obter a maioria do voto popular para ser eleito presidente. Al Gore democrata derrotou George Bush em 2000 e contudo este ficou com a Casa Branca. Há mecanismos democráticos, sumamente aperfeiçoados nos EUA, que garantiram alcançar esse milagre político: o que perde, ganha.As eleições realizam-se em dias laborais e em horários de trabalho. Na primeira terça-feira de Novembro, a cada dois anos. Desse modo, só os melhores e os mais responsáveis participarão nas eleições. Também os mais ricos. Os desempregados não devem ter a má ideia de querer votar. As forças do mercado poderão dar os recursos para comprar votos, políticos, fazedores de inquéritos, comunicadores sociais e o que for necessário para ganhar uma eleição. As grandes empresas oferecem dinheiro também ao seu adversário. Ou quando acontece que a política se degrada num simples jogo em que dois milionários competem para ver quem manda mais. Se George W. pode ganhar em 2000, apesar de haver perdido, foi porque dois Tribunais Supremos, o da Florida e o Federal, validaram a manobra que permitiu corrigir o erro do eleitorado. O da Florida foi reformatado pelo irmão Jeb governador, e o de Washington pelo pai George. Portanto, se quiser ser democrático, faça com que o seu pai e irmão designem um Tribunal Supremo de amigos incondicionais; caso eles não possam, faça-o por sua conta. A América não confia na cidadania. Faz um controle restrito dos livros que os americanos lêem, das bibliotecas que consultam, dos amigos que visitam, das organizações em que militam, dos manifestos que assinam. Os serviços secretos escutam e gravam as conversas telefónicas e registam a correspondência. Esquece-se cada vez mais as ordens judiciais ou as leis, que costumam proteger os acusados. Desqualifica-se os opositores como anti americanos, terroristas ou traidores. Com os mais recalcitrantes, é enviá-los em segredo a centros clandestinos de interrogatórios em países terceiros, defensores incondicionais da democracia e da liberdade, onde a tortura é legal. Desse modo desalenta-se os seus comparsas e obtêm-se valiosas informações para defender a democracia, a liberdade e os direitos humanos.Os órgãos de informação de massa só emitam informações oficiais. Veja o que se está a fazer em relação ao Iraque e ao Afeganistão: os grandes media impressos e electrónicos deste país só publicam o que o Rumsfeld e o Cheney querem. Em três anos de guerra, o público não viu nem uma gota de sangue, um morto ou um mutilado. Esqueça-se da Sociedade Inter americana de Imprensa ou dos Repórteres sem fronteiras. Esses são nossos e mantemo-los para atacar Cuba e a Venezuela. A América esquece-se dos direitos humanos. Isso é só um trunfo para fustigar os vermelhos, que não são pessoas e sim inimigos da civilização que devem ser combatidos sem quartel. Aprenda com o que fazemos em Guantánamo ou em Abu Ghraib: nem prisioneiros de guerra, nem detidos, nem processados. Não se deixe intimidar pela gritaria dos organismos de direitos humanos. Se não tiver instalações na Bolívia, podemos alugar-lhe um pavilhão em Guantánamo. Recorde que aos nossos terroristas nós os protegemos e chamamo-los de "combatentes pela liberdade". Não se deixe enganar pelos comunistas, que desvirtuaram Lincoln. Este jamais disse que a democracia era "o governo do povo, pelo povo e para o povo". A tradução correcta é "governo dos mercados, pelos mercados e para os mercados". Não tente governar contra os ventos da globalização. O FMI, o BM e o BID o ajudarão, como fizeram antes com imensos países.Se vir que algum vizinho promove políticas que poderiam afectar a segurança nacional, não permaneça de braços cruzados. Envie os seus agentes para organizar, financiar e desencadear a oposição, que nesses países dominados pela esquerda costuma ser fraca e impotente: acuse o governo de fazer parte do eixo do mal, bloqueie sua economia, promova sabotagens e atentados terroristas, impeça que se visite esse país, denuncie-o por sua conivência com Saddam, Bin Laden e os narcotráficos, e conceba uma proposta de "mudança de regime" para libertar o país dos seus opressores. Não se preocupe com a imagem internacional: haverá sempre alguém que porá rapidamente as suas canetas ao serviço da sua causa, para isso é que são pagos.
http://resistir.info/bolivia/decalogo_bolivia.html

A Política dos E.U.A.- Estados Rebeldes

O conceito de "Estado Rebelde" desempenha hoje um papel determinante no planeamento político e análise. A presente crise do Iraque é um dos seus últimos exemplos. Washington e Londres declararam que o Iraque é um "Estado Rebelde", uma ameaça para os seus vizinhos e para o mundo inteiro, uma "nação fora-da-lei" liderada por um reencarnação de Hitler que tem que ser contida pelos guardiões da ordem mundial, os Estados Unidos da América e o seu "pequeno parceiro" britânico, adoptando o lamentável termo usado pelo Departamento de Assuntos Externos Britânico usado há cerca de meio século. O conceito merece um olhar atento. Mas primeiro, vejamos a sua aplicação nesta crise actual.A característica mais interessante do debate sobre a crise no Iraque é que ele nunca aconteceu. Sim, houve palavras no ar, e houve disputa acerca de como proceder. Mas a discussão era sempre limitada por limites rígidos que excluíam a resposta óbvia: os Estados Unidos e o Reino Unido devem actuar segundo as suas leis e tratados internacionais.A estação de trabalho legal relevante está formulada na Carta Régia das Nações Unidas, "um tratado solene", reconhecido como o fundador da lei internacional e ordem mundial, e de acordo com a constituição americana, " a lei suprema da Terra" A Carta Régia estabelece que "o Conselho de Segurança determinará a existência de alguma ameaça à paz, rotura da paz, ou acto de agressão, e fará recomendações, ou decidirá que medidas terão que ser feitas de acordo com os artigos 41 e 42," que detalham as preferidas "medidas que não involvam o uso de forças armadas" e que permitam ao Conselho de Segurança tomar outras medidas se achar que estas são insuficientes. A única excepção é o artigo 51, que permite o "direito à defesa colectiva ou individual" contra "ataques armados... até que o Conselho de Segurança tenha tomado as providências necessárias à manutenção da segurança e paz internacional". Aparte destas excepções, os estados membros "abster-se-ão nas suas relações internacionais do uso ou ameaça de força".Há maneiras legítimas de reagir às diversas ameaças à paz mundial. Se os vizinhos do Iraque se sentissem ameaçados, ele poderiam contactar o Conselho de Segurança, autorizando-o a tomar as medidas adequadas para responder à ameaça. Se os Estados Unidos e a Grã-Bretanha se sentissem ameaçadas, pudiam fazer o mesmo. Mas nenhum estado tem a autoridade de fazer as suas próprias determinações nestas questões e de actuar segundo elas; os E.U.A e o R.U. não têm tal autoridade nem que fossem inocentes nesta matéria, o que dificilmente é o caso.Os estados "fora-da-lei" não aceitam estas condições: o Iraque de Saddam, por exemplo, ou os Estados Unidos. A posição deste foi claramente articulada pela secretária de estado, Madeleine Albright, e posteriormente pelo embaixador das Nações Unidas, quando ela informou o COnselho de Segurança durante um primeiro confronto entre o Iraque e os Estados Unidos, de que os Estados Unidos actuarão "multilateralmente quando puderem e unilateralmente quando o tiverem que fazer," porque "reconhecemos que essa área é vital para os interesses Norte-Americanos" e como tal não aceitam intervenções exteriores que as restrinjam. Albright reiterou essa posição quando o secretário geral das Nações Unidas, Kofi Annan, empreendeu a sua missão diplomática em Febreiro de 98: "Desejamos-lhe felicidades", disse ela, e "quando ele regressar veremos o que ele alcançou e como tal se encaixa no nosso interesse nacional", o que determinará como iremos responder. Quando Annan anunciou que tinha chegado a um acordo, Albright repetiu a sentença: "é possível que ele tenha algo que nós não apreciaremos; em tal caso persistiremos nos nossos interesses nacionais". O Presidente Clinton declarou que se o Iraque falhar o teste da conformidade (o qual é defenido por Washington), "toda a gente entenderá que os Estados Unidos e de certeza todos os nossos aliados terão o direito unilateral de responder quando, onde e como quiserem" à maneira de outros estados violentos e sem lei, acrescente-se...O Conselho de Segurança reforçou o acordo de Kofi Annan, rejeitando as exigências dos E.U.A./ R.U. que autorizavam o seu uso da força em caso de não haver acordo. A resolução avisava das mais "severas consequências," mas sem mais especificações. No parágrafo final e crucial, o Conselho "decidiu, de acordo com as suas responsabilidades segundo a Carta Régia, de permanecer activamente no controle desta situação, para assegurar a implementação desta resolução e para assegurar a paz e a segurança nessa área". O Conselho, mais ninguém; de acordo com a Carta Régia.Os factos eram claros e esclarecidos. Os títulos de primeira página diziam: "Um ataque automático não está aprovado" (Wall St. Jornal); "O.N.U. recusa veentemente a ameaça dos E.U.A. ao Iraque se este quebrar o pacto" (New York Times); etc. O embaixador para a O.N.U. britânico "garantiu em privado aos seus colegas do Conselho que esta resolução não permitia que os Estados Unidos e o Reino Unido tomassem uma resposta imediata disparando ataques contra o Iraque se isto fosse contra" as pesquisas da O.N.U. "Terá que ser o Conselho de Segurança a determinar quando se deve empregar ou não o uso das forças armadas", declarou o embaixador da Costa Rica, expressando a posição do Conselho de Segurança. A reacção de Washington foi diferente. O embaixador dos E.U.A., Bill Richardson reivindicou que o acordo "não impossibilitava o uso unilateral da força" e que os E.U.A. retinham o seu direito legal de intervir em Baghdad à vontade. O porta-voz do Departamento de Estado James Rubin rejeitou a palavra da resolução dizendo que "não é tão relevante como as reuniões particulares que tivemos": "Não digo que não nos importamos com tal resolução," mas "tornámos claro que não vemos a necessidade de restituirmos ao Conselho de Segurança a decisão se houver uma quebra do acordo". O Presidente afirmou que a resolução "fornece a autoridade para intervir" se os Estados Unidos não se satisfizerem com os compromissos do Iraque; a sua secretária para a imprensa tornou claro que isso significa acções militares. "Estados Unidos insistem em que manteêm o seu direito para castigar o Iraque," reportou a 1ª página do New York Times, e com razão. Os E.U.A. têm o direito unilateral de agredirem o Iraque: ponto final.Alguns sentiram que até esta posição se assemelhava muito às nossas obrigações segundo a lei internacional e doméstica. O líder da maioria do senado, Trent Lott, denunciou a Administração por ter "submetido" a sua política externa ao interesse de "outros"-o Conselho de Segurança das Nações Unidas. O senador John McCain avisou que "os Estados Unidos poderão estar a subordinar o seu poder às Nações Unidas," uma obrigação apenas para as nações que cumprem a lei. O Senador John Kerry acrescentou que seria "legitímo" para os Estados Unidos invadir o Iraque sem problemas de consciência se Saddam "permanecer intrasigente e continuar a violar as resoluções das Nações Unidas, e numa posição de ameaça para a comunidade mundial," quer o Conselho de Segurança o determine assim ou não. Essas acções unilaterais dos E.U.A. seriam "dentro do domínio da lei internacional," do ponto de vista de Kerry.Uma pomba branca liberal que alcançou o reconhecimento nacional como opositor à guerra do Vietname, Kerry explicou que a sua presente posição era coerente com as sua opinões do passado.O Vietname ensinou-o que a força apenas deve ser empregue se o objectivo puder ser "alcançado e esteja em acordo com as necessidades do nosso país". A invasão do Kuwait por Saddam foi então errada por apenas uma razão: não pôde ser alcançada, como se viu.No fim do espectro ingénuo-liberal, o acordo de Annan foi benvindo, mas dentro da restrita estrutura que tapava as questões centrais. Numa reacção tipíca, o Boston Globe declarou que se Saddam não tivesse recuado, "os Estados Unidos não estariam apenas justificados pelo ataque feito ao Iraque, mas como seriam considerados irresponsáveis se não o tivessem feito", sem mais perguntas feitas. Os editores também apelaram a "um consenso universal de opinão" contra "as armas de destruição maciça" como "a melhor maneira que o mundo tem de impedir a perversão da ciência de inflingir danos inimagináveis". Uma proposta sensível; alguém podia pensar em razões mais fáceis para começar, sem as ameaças da força, mas essas não são para aqui chamadas".O analista político William Pfaff deplorou a relutância de Washington em consultar "opiniões teológicas ou filosóficas," as ideias de Tomás de Aquino ou do teólogo do Renascimento Francisco Tuarez como "parte da comunidade analítica" nos E.U.A. e R.U. , que tinham feito "durante os anos de 1950/50", procurando guias da "filosofia e teologia"! Mas não as fundações das contemporâneas leis internacionais e domésticas, que são explícitas, mas irrelevantes para a cultura intelectual. Outra análise liberal tentou estimular os Estados Unidos para encararem o facto de que se o seu poder incomparável "está realmente a ser exercido para o bem da humanidade, a humanidade então exige ter opinião no assunto," o que não seria permitido pela "Constituição, pelo Congresso ou pelos telejornais de Domingo"; "E as outras nações não atribuiram a Washington o direito de decidir quando, onde e como os seus interesses seriam executados" (Ronald Steel).A Constituição fornece esses mecanismos, nomeadamente, declarando tratados válidos "as leis supremas da Terra", particularmente a Carta Régia das Nações Unidas, o mais fundamental deles. Autoriza posteriormente o congresso a "defenir e castigar... ofensas contra a lei das nações," sob a tutela da Carta Régia na era contemporária. É, demais então, querer dizer que outras nações "não deram a sua autorização a Washington"; elas negaram propositadamente esse direito a Washington, seguindo a sua liderança (pelo menos retórica), que engenhosamente escreveu a carta na sua maioria.A referência à violação do Iraque das resoluções das Nações Unidas foi regularmente empregue para implicar que os dois estados guerreiros têm o direito a usar as suas forças unilateralmente, tomando o papel de "polícia do mundo", um insulto à polícia cuja função em princípio é fazer cumprir a lei, não reduzi-la a cacos. Houve critícas à arrogância do poder de Washington e do seu parceiro, que não são exactamente os termos correctos para um autodesignado estado sem lei e violento como são os E.U.A. Alguém podia tentar achar um torturado argumento legal que legitimasse as justificações dos E.U.A./R.U., apesar de ninguém ter tentado. O primeiro passo seria que o Iraque teria violado a resolução da O.N.U. 687 de 3 de Abril de 1991, que declara um cessar-fogo em caso do "Iraque notificar oficialmente" que aceita as recomendações decretadas (destruição das armas de fogo, inspecções, etc.). Este é provavelmente o mais longo e detalhado relato do Conselho de Segurança, mas não menciona mecanismo de vigência. Passo segundo do argumento seria então que o não compromisso do Iraque "reinvoca" a resolução 678 (29 Nov. 1990). Aquela resolução autoriza os Estados Membros a "usarem todos os meios necessários a implementarem e manterem a resolução 660" (2 Ago. 1990), que apela ao Iraque para retirar imediatamente do Kuwait e para o Iraque e o Kuwait recomeçarem "intensas conversações de paz para a resolução das suas diferenças," recomendando a estrutura da Liga Árabe como mediador. A resolução 678 também invoca "todas as subsequentes resoluções relevantes" (listando-as: 662, 664); estas são relevantes na medida em que se referem à ocupação do Kuwait pelo Iraque e as acções deste dentro desse panorama de invasão. Reinvocando a 678 deixa assim as coisas como elas estavam: sem autorização do o uso da força para implementar a 687, o que traz questões completamente diferentes, não autorizando nada além de sanções.Não há necessidade de debater este problema. Os E.U.A. e o R.U. podiam ter tentando esclarecer todas as dúvidas, recorrendo ao Conselho de Segurança para que este autorizasse as suas "ameaças e uso da força", como requerido pela Carta Régia. A Grã-Bretanha tomou algumas medidas nesse sentido, mas logo as abandonou quando se tornou claro que não seriam autorizadas. Mas estas considerações não tomam relevância num mundo dominado por estados rebeldes que rejeitam o código da lei.Suponhamos que o Conselho de Segurança autorizava o uso da força para repreender o Iraque pela sua violação da resolução 687 do cessar-fogo das Nações Unidas. Essa autorização destinava-se a todos os estados membros. Por exemplo ao Irão, que então seria livre para invadir a região sul do Iraque para patrocinar uma rebelião. O Iraque é um vizinho e uma vitíma dos E.U.A.-que apoiaram a agressão do Iraque e o seu arsenal químico, e que podiam alegar, não infundadamente, que a sua invasão poderia ter algum apoio local; os E.U.A. e o R.U. não podem fazer tal declaração. Tais acções iranianas, se imagináveis, nunca seriam toleradas, mas seriam concerteza muito menos revoltantes que os planos dos auto intitulados juízes mundiais. É difícil imaginar essas observações elementares a entrar na opinião pública dos Estados Unidos e do Reino Unido.O desrespeito pelo papel da lei nos Estados Unidos está profundamente ligado às suas prácticas e à sua cultura intelectual. Lembrem-se, por exemplo, a reacção ao julgamento do Tribunal Internacional condenando os E.U.A. por "uso injusto da força" contra a Nicarágua, exigindo que desista e que pague extensas reparações, e declarando todos as ajudas dos Norte-Americanos aos Contra como "ajuda militar" e não "ajuda humanitária". O tribunal foi denunciado por todos os lados por se ter contradicto a si próprio. Os termos do julgamento não foram considerados adequados para serem impressos, e foram ignorados. O congresso democrata aprovou imediatamente novos fundos para acelarar o uso injusto da força. Washington vetou uma resolução do Conselho de Segurança que solicitava a todos os estados o respeito pelas leis internacionais; apesar de não terem especificado ninguém, a intenção era clara. Quando a Assembleia Geral aprovou uma decisão similar, os E.U.A. tornaram a votar contra, e efectivamente vetá-la, apoiados apenas por Israel e El Salvador; no ano seguinte, apenas o voto automático de Israel pôde ser amealhado. Pouco desta notícia foi filtrado pelos jornais, televisões e restantes medias de opinião; quanto mais saber o que significa.O secretário de estado George Schulz explicou entretanto (14, Abr 1986) que "Negociações são um eufemismo para a capitulação se a sombra do poder não é jogada na mesa dos contratos". Ele condenou aqueles que defendem "meios utópicos e legais como mediação exterior, as Nações Unidas, e o Tribunal Internacional mas que ignoram o elemento do poder nessa equação"-sentimentos não sem precedência na História Moderna".A contumácia existente para com o Artigo 51 é particularmente reveladora. Foi demonstrado com clarividência notáveis imediatamente após os acordos de Genéva de 1954 sobre um enclave pacífico na Indochina, vistos como um "falhanço" por Washington, que prontamente se dispôs a destruí-los. O Conselho Nacional de Segurança decretou secretamente que até no caso de "subversões ou rebeliões Comunistas locais não armadas" os E.U.A. considerariam o uso de forças armadas, incluindo um ataque à China se "estiver determinado" que foi a fonte das "subversões"( NSC 5429/2; ênfase minha). A condição, repetida anualmente para os documentos de planeamento, foi escolhida assim para tornar explícita a violação americana ao artigo 51. O mesmo documento apelava à remilitarização do Japão, convertendo a Tailândia no "ponto fulcral da cobertura e operações psicológicas dos E.U.A. no sudoeste asiático", tomando as "operações secretas numa escala alargada e efectiva" ao longo da Indochina, e no geral, actuando com convicção para sabotar os Acordos e a Carta Régia das Nações Unidas. Este importantíssimo documento foi grosseiramente considerado falso pelos historiadores do Pentágono,e desapareceu vastamente da História. Os E.U.A. apressaram-se a defenir "agressão" para incluir "políticas de guerra, ou subversões" (por outras nações que não eles, é claro)- o que Adlai Stenveson apelidou de "agressão internacional", enquanto defendendo a tomada de posição de JFK para um ataque de topo de escala contra o Vietnam do Sul. Quando os E.U.A. bombardearam cidades líbias em 1986, a justificação oficial foi "em própria defesa de um futuro ataque". O especialista legal do New York Times, Anthony Lewis, elogiou a Administração por esta "se basear em argumentos legais de que a violênia [neste caso] se justificava como um acto de própria defesa," segundo esta interpretação criativa do Artigo 51 da Carta Régia, que teria envergonhado um aluno do secundário. A invasão americana do Panamá foi defendida no Conselho de Segurança das Nações Unidas pelo embaixador Thomas Pickering, por apêlo ao artigo 51, o qual, ele declarou, "proporciona o uso das forças armadas para defender um país, para defender os nossos interesses e os nossos cidadãos", e intitula aos Estados Unidos o direito de invadir o Panamá para impedir que "o seu território se transforme numa base usada para traficar drogas para os Estados Unidos". A opinão pública literada concordou sabiamente.Em Junho de 1993, Clinton ordenou um ataque de misséis ao Iraque, matando civis e engrandecendo de honras o presidente, os santinhos do congresso, e a imprensa, os quais acharam os ataques "apropriados, razoáveis, e necessários". Os comentadores ficaram particularmente impressionados pelo apelo da embaixadora Madelaine Albright ao artigo 51. O bombardeamento, explicou ela, foi "em própria defesa contra um ataque armado"-nomeadamente uma alegada tentativa de assassinato do antigo Presidente Bush 2 meses antes, um apelo que muito dificilmente vingaria no nível do absurdo, mesmo que os Estados Unidos conseguissem demonstrar o envolvimento do Iraque; "oficiais da Administração, falando anonimamente", disseram à imprensa "que o julgamento da culpa do Iraque foi baseado em provas circunstanciais e análise, ao invés de contra-inteligência," disse o New York Times, tratando esta questão mal e depressa. A imprensa assegurou opiniões de elite de que as circunstâncias "ajustavam-se na perfeição" ao Artigo 51 (Washington Post). "Qualquer Presidente tem o dever de usar força militar para proteger o interesse da Nação"(New York Times, enquanto expressava algum ceptcismo quanto ao caso). "Diplomaticamente, isto foi a maneira certa e racional que invocámos," e a "referência de Clinton ao artigo 51 das Nações Unidas converge no desejo dos Estado Unidos de respeitarem a lei Internacional" (Boston Globe). O artigo 51 "permite que os Estados respondam militarmente se forem ameaçados hostilmente" (Monitor da Ciência Cristã). O artigo 51 dá a um estado o poder de usar a força "em própria defesa contra ameaças a esse estado," instruiu o Secretário de Estado para Assuntos Externos Britânicos, Douglas Hurd, apoiando a "decisão justificada e acertada do direito ao uso da própria defesa" de Bill Clinton. Existiria um "estado perigosíssimo de paralisia" no mundo, continuou Hurd, se os Estados Unidos tivessem que ser aprovados pelo Conselho de Segurança cada vez que quisessem bombardear o país de um inimigo que pode ou não ter ordenado o assassinato falhado de um ex-Presidente Americano 2 meses antes".Os arquivos suportam vigorosamente o assunto largamente difundido de "estados rebeldes", que se dedicam ao uso da lei da força, actuando no seu "interesse nacional", como defenido pelo seu poder doméstico; ameaçadoramente, estados rebeldes que se nomeiam juíz e carrasco global. Estados Rebeldes: a Definição PossívelÉ também interessante rever as questões que participaram do anti-debate sobre a crise do Iraque. Mas primeiro uma palavra acerca do conceito de "estado rebelde".A concepção básica é que apesar da Guerra Fria ter acabado, os E.U.A. ainda têm a responsabilidade de proteger o mundo. Mas de quem? Certamente não será da ameaça "nacionalismos radicais", os quais não estão dispostos a submeterem-se à vontade dos poderosos. Tais questões só fazem parte do contexto de planeamento de documentos internos, não da opinião pública. Desde o princípio da década de 80, ficou claro que a técnica convencional de mobilização das massas estava a perder a sua eficácia: o apelo de JFK sobre a "conspiração monolítica e impiedosa", o "império maligno" de Reagan. Eram precisos novos inimigos.Em casa, o medo do crime-especialmente das drogas- foi estimulado por "uma série de factores que tinham pouco ou nada a ver o crime em si", concluiu a Comissão Nacional de Justiça Criminal, incluindo práticas dos média e "o papel do governo e da indústria privada em armazenar o medo dos cidadãos," "explorando conflitos raciais latentes para fins políticos," com as diferenças raciais acentuando-se e devastando as comunidades negras, criando um "abismo racial" e pondo " a nação à beira de uma catástrofe social". Os resultados têem sido descritos pelos criminologistas como o "Gulag Americano," "o novo Apartheid Americano," com os Afro-Americanos a terem pela primeira vez na história americana a maioria populacional nas prisões, presos sete vezes mais frequentemente que os brancos, que estão quase completamente fora das taxas de prisões, as quais excluem quase totalmente os negros do uso e tráfico de droga.No estrangeiro, as ameaças costumam ser "terrorismo internacional", "narcotraficantes hispânicos", e o mais sério de todos, "estados rebeldes". Um estudo secreto de 1995 do Comando Estratégico, que é responsável pelo uso adequado do arsenal nuclear, expõe a ideia base. Exposta a partir do acto de Informação Livre, o estudo, chamado de Essências da Política de Ameaça Nuclear do Pós Guerra Fria, "mostra como os Estados Unidos mudaram a sua política de ameaça de guerra nuclear típica da Guerra Fria da União Soviética para com os chamados Estados Rebeldes, como a Líbia, o Iraque, Cuba e a Coreia do Norte", diz a AP. O estudo advoga que os Estados Unidos aproveita-se do seu arsenal nuclear para se retratar a si proóprio como "irracional e vingativo se os seus interesses nacionais forem postos em causa". Isso "deve ser parte de uma personalidade nacional que projectamos para todos os nossos adversários," particularmente para com os "estados rebeldes". "Magoa-nos retratarmo-nos como totalmente racionais e calmos", quanto mais subjugarmo-nos a essas imbecilidades como obrigações perante a lei e outros tratados. "O facto de alguns membros" do governo dos Estados Unidos "aparentarem estarem 'prestes a explodir' é benéfico pois pode criar e reforçar dúvidas, medos nos indivíduos que tomam decisões dos países inimigos". O relatório ressuscita a teoria de Nixon do "Homem Maluco": os nossos inimigos devem reconhecer que nós somos doidos e imprevísiveis, com uma força destrutiva extraordinária sob o nosso comando, para que se verguem à nossa vontade com receio de retaliações". O conceito foi aparentemente legado por Israel nos anos 50 pelo Partido Trabalhista do Governos, cujos líderes "rezavam por actos de loucura," escreveu o Primeiro Ministro Moshe Sharret no seu diário, avisando que "nós passávamo-nos" ("nishtagea") se fôssemos impedidos, "uma arma secreta", armada em parte contra os E.U.A., mas considerada não o suficiente fidedigna. Nas mãos da única superpotência do mundo, que se vê a si própria como um Estado Rebelde e que está sujeita apenas à análise de umas poucas elites desse meio, essa posição representa um perigo significativo para o mundo.A Libía sempre foi a escolha favorita da Administração Reagan para Estado Rebelde. Vulnerável e sem defesas, é um saco de porrada perfeito quando for preciso: por exemplo, em 1986, quando pela primeira vez na história um bombardeamento foi propositadamente montado para ser a reliquía do horário nobre na TV, isto foi usado pelos escritores do discurso do Grande Comunicador para enaltecer a atitude de Washington em começar ataques terroristas contra a Nicarágua, com base que o arqui-terrorista Kadaffi "tenha enviado $400 milhões de dólares e um arsenal de armas e aconselhadores militares para a Nicarágua, com o objectivo de levar a sua guerra para os próprios Estados Unidos", os quais depois podiam exercer o seu direito à defesa contra ataque armado do estado rebelde da Nicarágua.Imediatamente após a queda do Muro de Berlim, terminando com qualquer vestígio da ameaça Soviética, a administração Bush submeteu o seu pedido ao Congresso para um enorme orçamento para o Pentágono. Explicou que "numa nova Era, prevemos que o nosso poderio militar continuará a ter um papel determinante no equilíbrio da balança mundial, mas... os usos imediatos da nossa força estarão mais provavelmente no Terceiro Mundo do que na União Soviética, onde novas capacidades e aproximações serão necessárias em breve", como "quando o Presidente Reagan ordenou às forças navais e aéreas Norte-Americanas para voltarem à Libía em 1986" para bombardearem alvos civis urbanos, guiados pelo "meta nobre de um ambiente internacional de paz, liberdade e progresso, dentro da nossa democracia e para que outras nações livres possam florescer". A primeira ameaça que enfrentamos é "gradual sofisticação tecnológica" do Terceiro Mundo. Temos assim que reforçar "a base industrial da defesa" -aka indústria de altas tecnologias- criando incentivos "para investir em novas instalações e equipamento mas também em novas investigações e desenvolvimentos". E teremos que manter as forças de intervenção, especialmente aquelas que vigiam o Médio Oriente, onde "as ameaças contra os nossos interesses" que necessitaram de intervenções militares não poderiam ser tratadas à porta do Kremlin"-contrariamente ao fabrico infinito, agora parado. Como foi reconhecido ao longo dos últimos anos, algumas vezes em segredo, a "ameaça" é agora considerada oficialmente como índigena à região, o "nacionalismo radical", a que é atríbuida muita importância, não só no Médio Oriente.Nesses tempos, "as ameaças aos nossos interesses" não podiam ser tratadas também à porta do Iraque. Saddam era então um amigo favorável e um parceiro comercial. O seu estatuto modificou-se apenas uns meses mais tarde, quando ele interpretou incorrectamente a vontade dos E.U.A. em permitir que ele modificasse a fronteira com o Kuwait pela força em autorização dos E.U.A. para que ele conquistasse todo o país-ou sob o ponto de vista da Administração Bush, para fazer aquilo que os E.U.A. fizeram com o Panamá. Num encontro de alto nível logo após a invasão do Kuwait, o Presidente Bush articulou o problema básico: "A minha preocupação com os Sauditas é que eles permitam... que possam retirar no último minuto e permitir um governo fantoche no Kuwait". O patrão dos Chief Joints, Colin Powell, expôs atentamente o problema :" Nos próximos dias, o Iraque irá retirar, "pondo a sua marioneta no governo" e "Toda a gente no mundo árabe ficará feliz".Semelhanças históricas nunca são exactas, é claro. Quando Washington retirou parcialmente do Panamá, após ter posto a sua marioneta no governo local, houve muita raiva por todo o hemisfério, incluindo no Panamá. Por todo o mundo houve pressões para que Washington não vetasse duas resoluções do Conselho de Segurança nem para que votasse contra a resolução da Assembleia Geral que condenava a "deplorável e flagrante violação da lei internacional e da independência, autonomia e direitos territoriais dos Estados" e fomentava a retirada das "forças armadas norte-americanas do Panamá. "A invasão iraquiana do Panamá foi tratada de modo diferente, remotamente iguais à maneira padrão, mas prontamente descoberta em revistas.Os factos inexpressíveis espalham uma luz interessante sob os comentários de analistas políticos: Ronald Steel, por exemplo, que pondera acerca do enigma que os Estados Unidos enfrentam, que, como "a nação mais poderosa do planeta, enfrenta grandes restrições à sua liberdade de usar a força do que qualquer outro país". Portanto, o sucesso de Saddam no Kuwait é comparado com a impossibilidade de Washington de exercer a sua vontade no Panamá.Vale a pena recordar que esse debate foi também efectivamente encerrado em 1990-91. Houve muita discussão se as sanções funcionariam, mas nenhuma sobre se elas já teriam funcionado, talvez logo após a aprovação da resolução 660. O receio de Washington de que as sanções poderiam ter funcionado animou a sua vontade em recusar testar as ofertas de retirada do Iraque desde Agosto de 1990 até Janeiro próximo. Com a mais rara das excepções, o sistema de informação apertou bem a disciplina à volta desta assunto. Votos antes dos bombardeamentos de Janeiro de 1991 mostraram uma vitória de 2-1 a favor de um estabelecimento pacífico baseado numa retirada do Iraque e também de uma realização de uma conferência acerca do conflito Israelo-Árabe. Poucos dos que defenderam esta posição podiam saber da posição da oposição democrática iraquiana, que foi tapada e não apareceu nos média corporativos. Ou não podiam saber que a posição que defendiam tinha sido publicada por oficiais americanos que a acharam razoável e que Washington categóricamente a rejeitou. Ou que uma proposta iraquiana de retirada tinha sido considerada pelo Conselho Nacional de Segurança tão cedo como em pricípios de Agosto, mas desmentida e rapidamente suprimida, aparentemente por medo que iniciativas iraquianas não mencionadas poderiam "atenuar a crise," como reportou o correspondente do New York Times para a Administração.Desde então, o Iraque dispensou a Libía e o Irão dos primeiros lugares de "estados rebeldes". Outros nem entraram no campeonato. O caso talvez mais flagrante é a Indonésia, que se transformou de inimigo em amigo, quando o General Suharto tomou o poder em 1965, presidindo a um enorme massacre que causou causou grande satisfação no Ocidente. Desde então que Suharto tem sido "o nosso querido amigo," como o descreveu a administração Clinton, enquanto o General levara a cabo agressões criminosas e infindáveis agressões contra o seu próprio povo; matando cerca de 10000 indonésios só nos anos 80, de acordo com o testemunho pessoal do "nosso homem" que escreveu que "os cadáveres eram deixados abandonados como forma de uma terapia de choque". Em Dezembro de 1975 o Conselho de Segurança das Nações Unidas ordenou que a Indonésia retirasse unilateralmente as suas tropas de Timor Leste "sem atrasos" e apelou a "todos os estados para que respeitassem a integridade territorial de Timor Leste e o direito legítimo do seu povo à autodeterminação". Os Estados Unidos responderam (secretamente) enviando carregamentos de armas para os agressores; Carter acelarou o fluxo de armas mais uma vez quando o massacre chegou quase ao nível do genocídio em 1978. Nas suas memórias, o embaixador para a O.N.U. Daniel Patrick Moynihan orgulha-se de "não ter permitido às Nações Unidas qualquer decisão eficaz em qualquer medida que ela tomasse," seguindo as ordens do Departamento de Estado, o qual "desejou que as coisas corressem como correram e trabalhou para que isso acontecesse". Os Estados Unidos também aceitam com alegria o roubo do petróleo de Timor Leste (com participação das companhias americanas) em violação de qualquer interpretação razoável das leis internacionais.A analogia com o Iraque/Kuwait é semelhante, apesar de existirem diferenças: para mencionar apenas a mais flagrante, os E.U.A. patrocinaram as atrocidades em Timor Leste, as quais são muito superiores às que foram feitas por Saddam no Kuwait.Há muitos mais exemplos, embora alguns dos que são habitualmente invocados tenham que ser tratados com cautela, especialmente os que falam de Israel. Os danos civis causados pela invasão do Líbano por Israel em 1982 com o apoio dos Estados Unidos excederam em muito aqueles causados por Saddam no Kuwait, e permanece como uma violação às resoluções do Conselho de Segurança datadas de 1978, ordenando a retirada rápida do Líbano, assim como outras que falam de Jerusálem, os montes Golan e outros assuntos; e haveria muitos mais se os E.U.A. não estivessem sempre a vetar resoluções parecidas. Mas a acusação corrente de que Israel, mais particularmente o seu governo, está a violar a resolução 242 da O.N.U. e os acordos de Oslo, e que os Estados Unidos exibem uma "dupla-face" permitindo tais violações, é, na melhor das hipóteses, baseado no entendimento errado de tais acordos. Desde o início que o processo Madrid-Oslo foi designado e implentado por Israel e os Estados Unidos para imporém uma instalação ao estilo Bantustan. O mundo árabe escolheu apagar-se deste matéria como o fizeram muitos outros, mas eles estão clarificados nos documentos actuais, e em especial nos projectos do governo Rabin-Peres, com a benção dos E.U.A., incluindo aqueles para os quais o governo de Likud está agora a ser denunciado.É falso afirmar que "Israel não está bem a violar os decretos de lei do Conselho de Segurança" (New York Times), mas as razões normalmente apresentadas devem ser examinadas cuidadosamente.Voltando ao Iraque, qualifica-se certamente como um estado líder e criminoso. Defendendo o plano dos E.U.A. de atacar o Iraque num encontro público que foi filmado, em 18 de Fevreiro, os secretários Albright e Cohen repetidamente invocaram a atrocidade fatal: Sadadm era culpado de "usar armas de alta-destruição contra os seus vizinhos bem como contra o seu povo"-o seu crime mais atroz. "É muito importante para nós deixar claro que os Estados Unidos e o mundo civilizado não podem lidar com alguém que está disposto a usar armas de destruição maciça contra o seu povo, já para nem falar contra os seus vizinhos.", enfatizou Albright numa resposta amarga a uma pessoa que perguntou acerca do apoi americano a Suharto. Pouco depois, o senador Lott condenou kofi Annan por este "procurar cultivar uma relação humanacom um assassino de massas", e denunciou a Administração por confiar numa pessoa que possa descer tão baixo.Palavras estranhas. Colocando de lado a questão feita relativa à invasão, Albright e Cohen apenas se esqueçeram-e os comentadores tiveram a gentileza de não lhes lembrar- de dizer que os actos que eles acham tão horrificantes não tenham transformado o Iraque num "estado rebelde". E Lott esqueçeu-se de lembrar que os seus heróis Reagan e Bush construiram relações fraternas de amizade com o "assassino de massas". Não houve apelos fanáticos quando Sadda, utilizou armas de gás tóxico nos Curdos em Halabja, em Março de 1988; pelo contrário, os E.U.A. e o R.U. continuaram a apoiar vivamente o assassino de massas, que na altura era o "nosso querido amigo". Quando o correspondente da TV ABC, Charles Glass revelou o local de um dos depósitos de arsenal biológico de Saddam 10 meses após Halabja, o Departamento de Estado negou os factos e a história morreu; o Departamento "emite relatórios sobre o mesmo local" observou Glass.Os dois guardiões da ordem global também forneceram outras atrocidades de Saddam-incluindo o uso de gás neurológico e outras armas bárbaras- como espionagem, técnicos, tecnologia, abastecimentos e muitos outros. O Comité de Banco do Senado traqueou carregamentos de "materiais biológicos" idênticos aos encontrados e destruídos por inspectores das Nações Unidas, recorda Bill Blum. Estes carregamentos continuaram pelo menos até Novembro de 1989. Um mês depois, Bush autorizava novos empréstimos para o seu amigo Saddam, para atingir "o propósito de aumentar as exportações dos E.U.A. e colocarmo-nos numa posição melhor para lidarmos com o Iraque sobre o assunto dos direitos humanos", anunciou o Departamento de Estado com uma cara séria, não encontrando críticas ou reportagens nos média corporativos.O relatório da Grã-Bretanha foi exposto, pelo menos parcialmente, num inquérito oficial (inquérito escocês). O governo britânico foi agora autorizado a conceder licenças às firmas britânicas para exportarem materiais usados em armas biológicas após a publicação do relatório, pelo menos até Dezembro de 1996.Numa edição de 28 de Fevereiro do Times, uma crónica das vendas Ocidentais que podiam ser usadas em armas bacteriológicas e outras armas de destruição maciça, menciona-se um exemplo das vendas dos E.U.A. nos anos 80, incluindo "agentes patogénicos mortais", com aprovação governamental, alguns dos quais provenientes dos Centros Militares para pesquisa bacteriológica em Fort Detrick. Só a ponta do iceberg por acaso.Um pretexto comum corrente é que os crimes de Saddam eram desconhecidos, por isso agora estamos chocados com a descoberta e queremos "deixar claro" que nós, pessoas civilizadas, "não podemos lidar com" o responsável por tais crimes (Albright). A postura é de um completo cinismo. Relatórios da O.N.U. de 1986 e 1987 condenam o Iraque pelo uso de armas químicas. O staff dos embaixadores dos E.U.A na Turquia entrevistaram sobreviventes Curdos de ataques químicos, e a C.I.A. relatou isso ao Departamento de Estado. Grupos dos Direitos Humanos relatam atrocidades em Halabja e noutros locais imediatamente. O secretário de Estado George Shultz revelou que os E.U.A. tinham provas sobre o assunto. Uma equipa de investigadores especialistas enviada pelo Comité de Relações Externas do Senado em 1988 encontrou "provas escandalosas do uso intensivo de armas químicas contra civis", acusando a permissividade Ocidental quando o Iraque usou essas armas contra o Irão e que convenceu Saddam a acreditar -correctamente- que poderia usá-las contra o seu próprio povo com impunidade -por acaso contra os Curdos que não são o "povo" desse patife com ascendentes tribais. O presidente do Comité, Clair Bornepell, introduziu a Prevenção do Acto de Genocídio de 1988, denunciando o silêncio, "enquanto pessoas morrem intoxicada" com a "cumplicidade" tal qual como "o mundo estava calado quando Hitler começou a sua campanha de terror que quase terminou no extermínio total de todos os judeus da Europa" e avisando que "não podemos ficar calados perante o genocídio outra vez". A administração Reagan opôs-se fortemente contra as sanções e insistiu em que a questão desaparecesse, enquanto propagandeava o seu suporte pela limpeza étnica. No mundo árabe, a "imprensa do Kuwait estava entre as mais entusiásticas dos média árabes, que apoiavam a cruzada de Baghdad contra os Curdos" relatou o jornalista Adel DarwishEm Janeiro de 1991, quando os tambores de guerra soavam altos, a Comissão Internacional de Juristas observou para a Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas que "após ter feito os mais flagrantes abusos contra a sua própria população sem uma palavra de aviso da O.N.U., o Iraque deve ter concluído que podia fazer o que quisesse". O.N.U. neste caso significa principalmente E.U.A. e R.U. Essa verdade deve ser enterrada conjuntamente com outras distracções "utópicas" e a lei internacional.Um comentador incomum podia notar que as recentes atitudes de tolerância dos E.U.A./R.U. para com o gás venenoso e arsenal químico não é muito surpreendente. Os britânicos usaram armas químicas na sua intervenção de 1919 no Norte da Rússia contra os Bolcheviques, e com grande sucesso, segundo o Comando Britânico. Como Secretário de Estado no Gabinete de Guerra em 1919, Winston Churchill ficou entusiasmado com as perspectivas de "usar gás envenenado contra tribos não civilizadas" -Curdos e Afegãos- e autoriza o Comando do Médio Oriente da RAF para usarem armas químicas "contra Árabes rebeldes como experiência," rejeitando as objecções do Gabinete Indiano que apelidavam esse uso de "irracional" e deplorando o "nojento uso de gás": "não podemos em quaisquer circunstâncias aceitar a não utilização de quaisquer armas que estão disponíveis para eliminar sucintamente a desordem que ocorre na fronteira," explicou ele; armas químicas são apenas "a aplicação da ciência Ocidental aos arsenais modernos".A Administração Kennedy foi pioneira no uso maciço de armas químicas contra civis pois lançou os seus ataques contra o Vietname do Sul em 1961-1962. Houve muita preocupação "justa" sobre os efeitos nos soldados americanos, mas não sobre os incomparáveis efeitos secundários em civis. Aqui, pelo menos. Num diário de grande circulação israelita, o reputado jornalista Aman Kapeliouk relatou a sua visita de 1988 ao Vietname do Sul, onde encontrou "milhares de Vietnameses que ainda morrem dos efeitos secundários do arsenal químico americano," citando estimativas de 250000 vitímas no Vietname do Sul e descrevendo as "cenas de terror" em hospitais do sul, com crianças morrendo de cancro e hediondas deformações à nascença. Foi o Vietname do Sul que foi alvo dos ataques químicos, e não o Norte, onde não existem estas consequências, relatou. Também há provas substanciais do uso de armas biológicas dos E.U.A. contra Cuba, relatos como notícias "sem importância", em 1977, e, no pior dos casos uma pequena componente do contínuo terror americano.À parte destes precedentes, os E.U.A. e o R.U. estão agora empenhados numa forma mortal do terror biológico no Iraque. A destruição das infraestruturas e o banimento das importações para repará-las tem causado doença, má-nutrição,e elevado números de mortos à nascença, incluindo 567000 crianças em 1995, de acordo com a investigação da O.N.U.; a UNICEF relata 4500 crianças que morreram num mês em 1996. Numa cruel condenação das sanções (20 de Janeiro de 1998), 54 bispos católicos citaram um arcebispo da região sul do Iraque, que relata "pragas que devastam os jovens e os doentes aos milhares," enquanto que "aquelas crianças que sobrevivem sucumbem à má-nutrição". O relatório do bispo, inteiramente exposto no jornal de Stanley Hells, o "O Lutador", recebeu pouca atenção da imprensa. Os E.U.A. e a Grã-Bretanha tomaram a iniciativa de bloquear programas de ajuda-por exemplo, atrasando a aprovação da utilização de ambulâncias, com base no argumento de que elas podiam ser usadas para o transporte de tropas, impedindo insecticidas para prevenir o alastramento das doenças e partes importantes para reparar sistemas de saneamento e higiene. Entretanto, diplomatas Ocidentais apontam que "os E.U.A. benefeciaram directamente das operações [humanitárias], se não tanto, pelo menos mais que os Russos e os Franceses," por exemplo pela aquisição de petróleo iraquiano no valor de 600 milhões de dólares (só em 2º lugar para a Rússia) e vendas pelas companhias americanas de 200 milhões de dólares em bens humanitários ao Iraque. Também relatam que a maioria do petróleo comprado pelas companhias russas acabam por ir ter aos E.U.A. O apoio de Washington a Saddam chegou ao extremo de estarem dispostos a supervisionar um ataque iraquiano ao USS Stark, matando 37 membros da tripulação, um privilégio apenas alcançado por Israel (no caso do USS Liberty). Foi o apoio decisivo de Washington a Saddam, logo após os crimes que agora chocam a Administração e o Congresso, que levaram à capitulação iraniana a "Bagdhad e Washington," conclui Dilip Hiro no seu livro sobre a história da guerra Irão-Iraque. Os dois aliados tinham "coordenado as suas operações militares contra Teerão". O abate de um avião civil iraniano pelo missíl teleguiado do cruzador Vincennes foi o culminar da "campanha diplomática, militar e económica" de Washington em suporte de Saddam, escreve o autor.A Saddam foi também pedido que fizesse os serviços normais de um Estado cliente: por exemplo, para treinar várias centenas de líbios enviados pelos E.U.A. para o Iraque, para que pudessem derrubar o governo de Kaddafi, revelou o ex-ajudante da Casa Branca de Reagan, Howard Teicher.Não foram os vários crimes que elevaram Saddam ao estatuto de "Monstro de Bagdhad": ao invés, foi o pisar do risco , tal como o criminoso menor Noriega, cujos actos mais violentos foram feitos quando ele era também "cliente" dos E.U.A. Já agora, alguém podia notar que a destruição do voo 655 do Irão pelo Vincennes pode voltar para assombra Washington. As circunstâncias são um bocado suspeitas, para não dizer mais nada. No jornal oficial da marinha, o Comandante David Carlson escreve que ele "preocupou-se manifestando suspeita" quando observou da sua embarcação próxima o Vincennes-que por sua vez estava em águas territoriais do Irão- de que tinham abtido o que era obviamente uma aviação civil numa rota comercial, talvez porque "precisamos provar a viabilidade do Aegis," o seu sistema de misseís de alta-tecnologia. O comandante e oficiais superiores "foram recompensados com medalhas pela sua conducta," observou o ex-Coronel David Evans dos Marine Corps no mesmo jornal, que apresentou também a reunião ácida do Departamento da Marinha para encobrir o caso. O presidente Bush afirmou às Nações Unidas que "uma coisa fique clara: o Vincennes agiu em própria defesa pois estava no centro de um ataque naval iniciado por embarcações iranianas," tudo isto levou a que, diz Evans, apesar de não ter muito significado, à posição de Bush de "Nunca pedirei perdão pelos E.U.A.-não me interessa quais são os factos". Um ex-coronel que foi às audições concluiu que "a nossa marinha é muito perigosa para agir em determinadas situações".É dificíl evitar o raciocínio de que a destruição do Pan Am 103 sobre Lockerbie uns meses depois foi retaliação iraniana, como dito explicitamente pelo investigador iraniano Abol Hassem Mesbali, também uma ajuda para o Presidente Rafsanjari, "visto como uma credível e senior fonte iraniana na Alemanha e noutros locais," relatou o "The Guardian". Um documento de investigação americano de 1991, da National Security Agency, arquivado em 1997, tira a mesma conclusão, alegando que Akbar Mohtasheri, um ex-ministro do anterior iraniano, transferiu 10 milhões de dólares para "abater o Pan Am 103 em retaliação ao abate norte-americano do airbus iraniano," referindo-se às suas ligações com "grupos terroristas Al Abas e Abu Nidal". É relevante que apesar da evidência e do motivo óbvio, isto é virtualmente o único acto de terrorismo não atríbuido ao Irão. Em vez disso, os E.U.A. e o R.U. acusaram os líbios do crime.As acusações contra os líbios foram amplamente discutidas, incluindo um detalhado inquérito por Denis Phipps, ex-patrão da segurança das British Airways quer serviu pelo governo no Comité Nacional de Aviação. A associação britânica das vitímas de Lockerbie acredita que houve "uma enorme conspiração" (porta-voz Dr. Jim Swire), e acham mais credível a conclusão dada pelo documentário de Alan Franks Vich, "The Maltese Cross", que fornece provas das ligações iranianas e de uma operação de droga envolvendo um estafeta que trabalhava para o D.E.A. americano. O filme foi mostrado na Casa dos Comuns britânica e na TV britânica, mas rejeitado. As famílias americanas manteram-se fiéis à versão de Washington.Também intrigante é a recusa dos E.U.A./R.U. em permitir um julgamento dos líbios acusados. Isto toma a forma de rejeição da oferta da Líbia em libertar os acusados para julgamento num local neutro: um juíz nomeado pelas Nações Unidas (Dezembro de 1991), um julgamento no Hague com lei escocesa, etc. Estas propostas foram apoiadas pela liga Árabe e pelos familiares das vítimas mas rejeitadas totalmente pelos E.U.A./R.U. Em Março de 1992, o Conselho de Segurança da O.N.U. aprovou uma Resolução impondo sanções contra a Líbia, com cinco abstenções: China, Marrocos (o único membro árabe), Índia, Zimbabwe, Cabo Verde.Houve até um braço-de-ferro: apesar da China ser avisada de iria perder preferências comerciais americanas se vetasse, a China não cedeu. A imprensa americana relatou a proposta da Líbia em libertar os suspeitos para julgamento negando-a e apelidando-a de infrutífera e ridícularizou o "gesto dramático de Kaddafi" que apelou à extradição dos pilotos americanos que bombardearam duas cidades Líbias, matando 37 pessoas, incluindo a sua filha adoptiva. Aparentemente, isso é tão absurdo como os pedidos de extradicção requesitados por Cuba e a Costa Rica aos Estados Unidos a propósito de terroristas americanos.É compreensível que os E.U.A./R.U. queiram assegurar um julgamento que possam controlar, como no caso do rapto de Noriega. Qualquer razoável advogado de Defesa recordaria a ligação iraniana num julgamento neutro. Quanto mais tempo irá durar a charada não é claro. No seio da corrente crise do Iraque, o Tribunal Internacional rejeitou a proposta dos E.U.A./R.U. de que não tinha juridiscção sobre o assunto, e tenciona emitir uma audição total (13-2 com votos contra dos norte-americanos e dos britânicos) que poderá tornar mais dificíl continuar com estes procedimentos.A proposta do Tribunal Internacional foi benvinda pela Líbia e pela famílias britânicas. Washington e os média dos E.U.A. avisaram que a proposta do Tribunal Internacional poderia prejudicar a Resolução da O.N.U. de 1992 que exigia que "a Líbia deve extraditar os acusados do crime de Lockerbie para julgamento na Escócia ou nos E.U.A."(New York Times), de que a "Líbia tem que enviar os suspeitos para os E.U.A./R.U."(AP). Estas reivindicações não são exactas. A questão da transferência para a Escócia ou para os E.U.A. nunca se colocou, e não está sequer mencionada nas Resoluções da O.N.U. A Resolução 731 (Janeiro de 1992) "incita o governo da Líbia a providenciar rapidamente uma resposta total e eficaz" aos pedidos "com ligação aos tratamentos jurídicos," relacionadas com ataques contra o voo Pan Am 103 e a uma aviação francesa. A Resolução 748 (31 Março 1992) "decidiu que o governo líbio deve agora obedecer sem mais atrasos," com o pedido da resolução 731, e que renuncia ao terrorismo, provocando as sanções se a Líbia não cumprir. A Resolução 731 foi adaptada em resposta a uma declaração dos E.U.A./R.U. de que a Líbia tem que "render para julgamento todos os acusados do crime", sem especificações.Artigos da imprensa na altura foram muito imprecisos. Aliás, relatando a rejeição norte-americana da proposta líbia para entregar os suspeitos num país neutro, o New York Times sublinhou as palavras: "Líbia tenta evitar outra ordem da O.N.U." O Washington Post denegriu a proposta também, reportando que o Conselho de Segurança deliberou que os suspeitos terão que ser entregues nos tribunais britânicos/norte-americanos". Sem dúvida que Washington prefere ter os problemas vistos sob este ponto de vista. Uma crítica correcta foi dada em 1992 numa opinião de Alfred Rubin, uma autoridade internacional legal do Fletcher School (Ciência Cristã), que notou que o Conselho de Segurança não menciona a extradicção para os E.U.A. ou para o R.U. e observa que o seu parecer "advém até agora de que os E.U.A., o R.U. e a França relataram que queriam que o que as declarações públicas e as 1ªs páginas de jornais diziam que era um triunfo da diplomacia americana e pressões da O.N.U. sob a Líbia, o que parecia incompreensível. "Infelizmente, isto é tudo rotina.No New York Times, o especialista britânico em direito internacional, Marc Weiter, concordou com Rubin em que os E.U.A. devem seguir claramente os requesitos da lei internacional e aceitar a proposta da Líbia para o Tribunal Internacional ser o tutor, entre outros. A resposta da Líbia para o pedido dos E.U.A./R.U. foi "precisamente a requerida pela lei internacional," escreveu Weiter, condenando essas 2 nações por terem "negado totalmente" que o Tribunal Internacional coordenasse o assunto. Rubin e Weiter também fizeram perguntas óbvias: suponham que a Nova Zelândia resistia às poderosas pressões francesas para obrigarem-na a abandonar a tentativa de extraditar os terroristas pagos pelo governo françês que bombardearam o Rainbow Warrior no parque de Auclkland? Ou que o Irão exigia a extradição do Capitão do Vincennes?O Tribunal Internacional chegou à mesma conclusão que Rubin e Weiter.Os atributos de "estado rebelde" são iluminados depois pela reacção de Washington aos acontecimentos no Iraque em Março de 1991, imediatamente após o cessar das hostilidades. O Departamento de Estado reiterou formalmente a sua recusa em ter algum contacto com a Oposição Democrática Iraquiana, e antes do começo da guerra, elas foram também ignoradas pelos média corporativos dos E.U.A. "Encontros políticos com eles não seriam apropriados à nossa política neste momento," disse o porta-voz do Departamento de Estado; Richard Boncher. "Neste momento ," era em 14 de Março de 1991, enquanto Saddam dizimava a oposição do sul perante o olhar do General Schwartz Kopf, recusando até permitir o acesso de rebeldes militares oficiais às armas capturadas ao Iraque. Não fosse pela inesperada reacção pública, Washington provavelmente não teria dado sequier apoio tépido aos rebeldes Curdos, sujeitos ao mesmo tratamento logo depois.Os líderes da oposição iraquiana perceberam a mensagem. Leith Kubba, chefe do Movimento de Reforma Democrática do Iraque em Londres, alegou que os E.U.A. favoreceram uma ditadura militar, insistindo que "mudanças no regime têm que vir de dentro, de pessoas que já estejam no poder". O banqueiro baseado em Londres Ahmed Cholabi, líder do Congresso Nacional Iraquiano, disse que "os E.U.A., camuflados pelo mui nobre objectivo de não interferência nos assuntos iraquianos, está à espera que Saddam massacre os dissidentes na esperança que ele seja deposto posteriormente por um oficial adequado," uma atitude enraízada na política dos E.U.A de "manter ditaduras para manter a estabilidade".As razões da Administração foram expressas pelo chefe diplomático correspondente do New York Times, Thomas Friedman. Enquanto se opunham a uma rebelião popular, Washington esperava que um golpe militar pudesse remover Saddam, "e aí Washington teria o melhor de todos os mundos; uma junta do Iraque com mão-de-ferro sem o Saddam Hussein," um regresso aos dias de quando Saddam "empunha uma mão de ferro... mantendo o Iraque unido, para satisfação dos aliados americanos, como a Turquia e a Arábia Saudita," já para nem falar de Washington. Dois anos depois, noutro útil reconhecimento da realidad, ele observou que "sempre foi a política da América de que o "mão-de-ferro", Sr. Hussein desempenhasse um papel relevante em manter o Iraque unido "mantendo a estabilidade". Há poucas razões para acreditar que Washington tenha modificado a preferência da ditadura para a democracia, por ter deplorado a Oposição Democrática Iraquiana, embora sem dúvida preferisse uma diferença do "mão-de-ferro" nesta fase crítica. Senão der, Saddam terá que servir.O conceito de "estado rebelde" é altamente subjectivo. Apesar de Cuba se classificar como "estado rebelde" devido ao seu alegado envolvimento no terrorismo internacional, os Estados Unidos já não o são; embora tenham feito ataques terroristas contra Cuba durante 40 anos e que aparentemente continuaram no Verão passado de acordo com importante investigações do Miami Herald que não chegaram à imprensa nacional (aqui; chegaram na Europa). Cuba era um "estado rebelde" quando as suas forças militares estavam em Angola, apoiando o governo contra os ataques sul-africanos apoiados pelos E.U.A. A África do Sul, em contraste, não era um "estado rebelde," nem durante os anos de Reagan, quando causou mais de 60 biliões de dólares em danos materiais e mais de 1,5 milhões de mortos em estados vizinhos, de acordo com uma comissão da O.N.U.; já para nem falar de alguns acontecimentos em casa- e com amplo apoio dos E.U.A./R.U. A mesma tese aplica-se à Indonésia e muitos outros. O critério fica então muito bem defenido: um "estado rebelde" não é simplesmente um estado criminoso, mas um que desafie ou conteste as ordens dos poderosos-que estão isentos de qualquer acusação, é claro.Mais no "O Debate"Que Saddam é um criminoso é sem dúvida verdade, e uma pessoa deve ficar satisfeita, suponho eu, que os E.U.A. e o R.U., e instituições de doutrinas dominantes capitalistas, tenham-se finalmente juntado aos que "prematuramente" condenaram o apoio dos E.U.A./R.U. É também verdade que Saddam é uma ameaça a alguém que esteja ao seu alcance. Na comparação da ameaça com outros, há pouco unanimidade fora do conjunto E.U.A./R.U., após estes (ambiguamente) se transformarem desde Agosto de 1990. O seu plano de 1998 para usar a força foi justificada nos termos de Saddam ser uma ameaça para a região, mas não existia maneira de ocultar o facto de que as populações da região se opunham à sua "salvação", tão entusiasticamente que os governos foram forçados a juntar-se à oposição da intervenção.O Bahrein não permitiu que as forças Americanas/Britânicas usassem as suas bases no país. O presidente dos Emiratos Árabes Unidos descreveu as ameaças dos E.U.A. como "malignas e abomináveis," e declarou que o Iraque não é uma ameaça para os seus vizinhos. O ministro da Defesa saudita, o princípe sultão tinha já dito que "não concordaremos e estaremos opostos ao bombardeamento do Iraque como pessoas e como nação," causando que Washington se abstivesse de um pedido para usar as bases sauditas. Após a missão de Annan, o experiente ministro dos Negócios Estrangeiros saudita, Príncipe Saud al-Faisal, reafirmou que o uso das bases aéreas sauditas "tem que ser uma questão das Nações Unidas, não dos Estados Unidos"Num editorial de um jornal quase oficial porta-voz do Egipto, Al Ahram descreveu a posição de Washington como "coerciva, agressiva, insensata e despreocupada com as vidas dos iraquianos, que necessariamente estão sujeitos a sanções e a humilhações," e denunciaram a "agressão planeada contra o Iraque". O parlamento jordano condenou "qualquer agressão contra o território do Iraque e qualquer mal que possa daí advir para os iraquianos"; o exército jordano foi forçado a fechar a cidade de Maan após dois dias de motins pró-Iraque. Um professor de ciência política da Universidade do Kuwait avisou que "Saddam está a representar a voz dos mudos do mundo Árabe," expressando a frustração popular para com a "Nova Ordem Mundial" e a defesa de Washington dos interesses israelitas.Até no Kuwait, o apoio pela posição dos E.U.A. foi no melhor das possibilidades, "tépido" e "cínica porque foi pelos interesses norte-americanos na região," reconhece a imprensa. "As vozes nas ruas do mundo árabe, desde as vielas do Cairo até às radiosas capitais da península Arábica, têem-se estado a elevar enquanto o tambor de guerra Americano contra o Iraque soa cada vez mais alto"-relatou o correspondente Charles Senott para o Boston Globe.À Oposição Democrática do Iraque foi permitida uma insípida exposição na indústria dos media, rompendo com o padrão usual. Numa entrevista telefónica com o New York Times, Ahmed Cholabi reiterou a posição que tinha sido relatada com grande detalhe em Londres algumas semanas atrás: "Sem um plano político para remover o regime de Saddam, os ataques militares não teram efeito nenhum," argumentou ele, "matando milhares de iraquianos, deixando Saddam talvez até mais fortalecido, juntamente com as suas armas de destruição maciça e com "uma desculpa para mandar embora os inspectores da O.N.U., "que de facto destruiram mais armas e instalações de produção que os bombardeamentos de 1991. Os planos dos E.U.A./R.U. "seriam piores que nada". Entrevistas com os líderes da oposição de vários grupos, encontraram "unanimidade quase total" em oposição a ataques militares que não tinham as ideias base para derrubar Saddam". Falando com um comité parlamentar, Cholabi defendeu que era "moralmente errado atacar o Iraque sem uma estratégia" para remover Saddam.Em Londres, a oposição também delienou um programa alternativo: (1) declarar Saddam um criminoso de guerra;(2)reconhecer um governo provisório Iraquiano formado pela oposição;(3)descongelar centenas de milhões de dólares de contas do Iraque no estrangeiro; restringir as forças de Saddam através de "zonas interditas" ou estender a "zona de voo interdito" a todo o país. Os E.U.A. deveriam "ajudar os iraquianos a retirarem o poder a Saddam Hussein," disse Cholabi ao Comité de Serviços Armados do Senado. Juntamente com outros líderes da oposição, ele "rejeita o assassínio, as operações encobertas dos E.U.A e as forças militares terrestres americanas," relatou a Reuteurs, apelando ao invés para uma "subversão popular". Propostas semelhantes apareceram ocasionalmente nos E.U.A. Washington afirma que tentou ajudar os grupos da oposição, mas a interpretação dos árabes é diferente. O ponto de vista de Cholabi, publicado em Inglaterra, é muito parecido com o de há alguns anos atrás: "muitos afirmam que Saddam está conformado com o poder, mas são os Americanos e os Britânicos que estão conformados por recusarem apoiar a ideia de mudança política".A oposição regional foi vista como um problema a ser evitado, não um facto a ter em conta, não mais que a lei internacional. O mesmo é verdade para com os avisos da O.N.U. e de outros orgãos internacionais do género, no Iraque, que previam que bombardear podia ter um "efeito catastrófico" em pessoas que já sofrem miseravelmente, e que possa acabar com as operações humanitárias que lhes trouxeram pelo menos algum alívio. O que importa é estabelecer que "O que nós dizemos é o têem que cumprir," como proclamou triunfantemente o Presidente Bush, anunciando a Nova Ordem Mundial enquanto bombas e misséis caíam em Bagdhad em 1991.Quando Kofi Annan estava a preparar a visita a Bagdhad, o ex-presidente iraniano Rafsanjani "ainda uma figura central em Teerão, teve uma audiência do angustiado Rei Fahd na Arábia Saudita" relatou o correspondente para o Médio Oriente Britânico, "em contraste com o tratamento dado a Madelaine Albright... nas suas recentes viagens a Ryadh, procurando apoios do principal aliado Americano na zona árabe". Quando a visita de Rafsanjani acabou em 2 de Março, o ministro dos Negócios Estrangeiros saudita descreveu-a como "mais um passo na direcção certa para melhorar relações," reiterando que "o elemento mais destabilizador no Médio Oriente e a causa de todos os outros problemas na região" é a política de Israel contra os Palestinianos e o apoio dado pelos E.U.A. a Israel, o que pode activar forças populares que a Arábia Saudita teme, bem como minar a sua legitimidade de "guardiã" dos locais sagrados islâmicos, incluindo a Redoma da Pedra no Leste de Jerusalém, agora efectivamente anexados pelos programas israelo-americanos como parte da sua intenção de expandir "a grande Jerusalém," virtualmente até ao vale da Jordânia, que ficará sob posse israelita. Um pouco antes, os Estados Árabes boicotaram uma cimeira econonómica patrocinada pelos E.U.A. no Qatar com a qual tinha a intenção de criar o projecto do "Novo Médio Oriente" de Clinton-Peres. Em vez disso, os países árabes juntaram-se numa conferência islâmica em Tierão em Dezembro, à qual até se juntou o Iraque.Estas são tendências de importância considerável, relacionadas com as preocupações do contexto que motivou a política dos Estados Unidos da América na região: a sua insistência, desde a Segunda Guerra Mundial, em controlar as principais fontes energéticas do planeta. Como muitos observaram, no mundo Árabe há um medo crescente e indignação da bem estabelecida aliança entre a Turquia e Israel, que foi formalizada em 1996, e agora reforçada. Durante alguns anos, foi uma engrenagem chave da estratégia norte-americana em controlar a região "bófia local a vigiar tudo," como disse o secretário de Estado da Defesa de Nixon. Há aparentemente uma apreciação crescente da posição iraniana em estabelecer tratados regionais de segurança, para substituir o domínio norte-americano. Um assunto relacionado é o interessante e intenso conflito acerca dos oleodutos que transportam petróleo da Ásia Central para os países ricos, e que passam todos pelo Irão. E as corporações energéticas dos E.U.A. não ficaram muito contentes em ver países rivais-incluindo a China e a Rússia- ganharem acessos às reservas iraquianas de petróleo. Só em segundo lugar na escala (Arábia Saudita é a 1ª), ou como gás natural do Irão, petróleo e outros recursos.No presente, os planeadores de Clinton podem estar aliviados por terem escapado temporariamente à "caixa" que eles construíram, e que os deixava sem opções a não ser o bombardeamento do Iraque que poderia ter sido prejudicial até para os seus próprios interesses - a folga é temporária. Oferece oportunidades aos cidadãos dos países guerreiro de criarem mudanças de consciência e compromissos que poderão fazer grande diferença num futuro não muito distante.
Noam Chomsky

O encarceramento maciço nos EUA

Permitam-me que comece por citar a minha personalidade histórica favorita, de Indiana -- o grande democrata socialista Eugene Debs, de Terre Haute. "Enquanto houver uma classe inferior, faço parte dela. Enquanto houver um elemento criminoso estarei com ele. Enquanto houver uma alma na prisão, não serei livre". NAÇÃO PRISÃO Debs sentir-se-ia muito menos livre nos EUA nos dias de hoje onde 2 milhões de adultos passam os seus dias atrás de barras, na nação que possui a taxa de encarceramento mais alta do mundo. No segundo ano do novo milénio, estavam presas 40 em cada 100.000 pessoas na Itália. A taxa de encarceramento na Suécia era 60 por 100.000. Na França: 90 por 100.000. Em Inglaterra: 125. Na África do Sul: 400 por 100.000. A Rússia tinha a segunda taxa mais alta no mundo: 675. Os Estados Unidos lideraram mundialmente com 690 por 100.000. Incrivelmente, a nação que se proclama a pátria e a sede da liberdade mundial, com 5 por cento da população do planeta, tem mais de mais de 25 por cento dos prisioneiros existentes em todo o mundo. "Nenhum outro país democrático ocidental reteve alguma vez na prisão tamanha proporção de sua população", diz Norval Morris, um professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de Chicago. Indiana e Illinois estão a desempenhar os principais papéis neste drama negro, contribuindo com 43.000 (Illinois) e 22.000 (Indiana) prisioneiros estaduais para o conjunto dos condenados da Nação Prisão. Se se considerarem os prisioneiros federais, locais e os municipais, estes números seriam bastante mais elevados. Os números do encarceramento nos EUA ultrapassam muito os valores (em termos relativos) do resto do mundo, mas além disso estão também muito para lá dos valores relativos da nossa própria história. Nas últimas duas décadas e meia, a população prisional dos EUA sofreu uma expansão "literalmente incrível", passando de um número inferior a 300.000 em 1970, até ao actual número absolutamente chocante. Haviam menos de 7500 prisioneiros em todo o estado de Illinois em 1970. Trinta um anos depois, cheguei à conclusão de que 7500 prisioneiros de Illinois provêm de apenas seis das sessenta e seis regiões administrativas de Chicago, sendo que cinco pertencem à zona oeste da cidade e uma à zona sul. Após estes 31 anos o número de instalações prisionais passou de 7 para 27. Ao rever estes números fico chocado com a profundidade deste desenvolvimento que se verificou silenciosamente, nos bastidores. Tudo decorreu numa quietude surpreendente, sem que se desse por isso, e durante a minha vida, o que aliás foi bastante bem retratado por Angela Davis: "Quando estive primeiramente envolvida com movimentos anti-prisionais durante os anos sessenta", escreve Davis, "fui surpreendida por perceber que havia na altura perto de 200 mil pessoas na prisão. Se alguém me tivesse dito então que passadas três décadas haveriam dez vezes mais pessoas encarceradas, eu não teria acreditado de todo. Imagino que teria respondido alguma coisa como: Quão racista e antidemocrático pode ser este país [lembremo-nos que durante aqueles anos, as questões relacionadas com o Movimento dos Direitos Civis não estavam ainda consolidadas], não acredito que o governo norte-americano possa trancar tantas pessoas sem que isso origine uma poderosa resistência. Não, isto nunca acontecerá, a menos que este país mergulhe no fascismo" (Angela Y. Davis, Are Prisons Obsolete?, Seven Stories Press, 2003, p.11). A taxa de encarceramento dos EUA começou a acelerar dramaticamente em meados dos anos setenta, depois de durante quase 50 anos ter estado estabilizada em redor de 100 por 100.000. O encarceramento é actualmente tão elevado que vários dos maiores estados despendem muito mais com o encarceramento de adultos do que despendem com os seus cidadãos nas faculdades e nas escolas secundárias. Os estados gastam actualmente 60 centavos em prisões por cada dólar gasto no ensino superior, muito acima dos 28 centavos em 1980. NAÇÃO DE EX-CONDENADOS: O ESTIGMA DE UM REGISTO CRIMINAL Embora pouco notado, o aprisionamento em massa nos EUA também gerou o surgimento de um exército maciço de "ex-infractores", cuja liberdade "do lado de fora" está estritamente condicionada ao longo de toda vida por um antecedente criminal. Todos os anos mais de 600 mil indivíduos são libertados dos presídios estatais e federais, alimentando e aumentando a multidão de ex-condenados, marcados com aquilo a que The Economist designou "O estigma que nunca desaparece". De acordo com as melhores e mais recentes estimativas, cerca de 13 milhões de americanos – o que corresponde a 7 por cento da população adulta e a 12 por cento da população adulta masculina – possui registo criminal. Graças a numerosas barreiras para a "reintegração" de ex-condenados (uma frase que nos leva a aceitar facilmente que tenha havido um esforço significativo para integrar os antigos prisioneiros em "estruturas de oportunidade" americanas anteriores à detenção e encarceramento), muitos prisioneiros libertados afirmam que a sua "condenação real" inicia-se após a sua libertação. Não temos dúvidas de que esta afirmação é frequentemente exagerada, pois as prisões "modernas" dos EUA são estruturas violentas e totalitárias, verdadeiros monumentos de miséria em massa intencionalmente planeados, mantendo-se presentes essas indesejáveis características, apesar do significativo investimento em reabilitação e tratamento. Devemos ter presente ainda as enormes dificuldades que os antigos prisioneiros têm de enfrentar. Uma das maiores reside no domínio do emprego. De acordo com estimativas recentes e críveis, o encarceramento origina uma significativa "penalização salarial", de 10 a 20%. "O tempo de prisão", segundo o sociólogo Devah Pager, "serve para desviar os indivíduos das ocupações qualificadas e dirigi-los para actividades profissionais mal remuneradas, precárias, e com menos oportunidades de progressão profissional". Num estudo baseado em 3000 entrevistas a empregadores realizadas pela Multi-City Study of Urban Inequality, os investigadores concluíram que mais de 60 por cento dos empregadores não contrataria conscientemente nenhum ex-condenado. A posse de um registro criminal é o único constrangimento que os empregadores identificam para não admitirem ex-condenados. Este não é um problema social sem importância para a maioria dos 13 milhões de pessoas que possuem tal registo, pois numa sociedade capitalista os adultos têm de fazer face às suas necessidades diárias através de um sistema de trocas que funciona basicamente no aluguer das suas capacidades de trabalho numa base sustentada. O patronato e outros viéses sociais, contra "ex-condenados" explicam porque cerca de dois terços dos prisioneiros libertados voltam às prisões ao fim de um período de três anos. Um considerável segmento da população, em crescimento nítido, passou a fazer parte do estrato da sociedade permanentemente estigmatizada, a "subclasse", onde é reciclado quem entra e sai das prisões. Isto cria um "elemento criminoso" perpétuo que os empurra mais ainda para as classes baixas e funciona como a matéria-prima de base para uma justiça criminal inchada, super-despendiosa e hiper-carcerária. "MORTE CIVIL" Juntamente com a privação dos direitos socio-económicos vem a privação dos direitos políticos. "Actualmente", observam autoridades académicas nessa matéria (Jeff Manza e Christopher Uggen), "48 estados privam de direitos os criminosos encarcerados, 37 estados privam de direitos os réus acusados de crime ou os que se encontram em liberdade condicional (ou ambos), e 14 estados privam adicionalmente de direitos alguns ou todos os ex- infractores que completaram as suas penas". Não existe outra nação democrática que negue o voto a tão significativa parte da sua população de condenados ou ex-condenados. Dos 14 estados um dos piores é, claro está, a Flórida, onde a privação de direitos por motivo de crime, complementada pela negação escandalosa e ilegal do direito de voto a muitas pessoas simplesmente por serem suspeitas de possuir registo de infracções, e ainda outros, cujos registos de infracções fora do estado (ver o primeiro capítulo com o título "Jim Crow in Cyberspace", do bestseller de Greg Palast: "The Best Democracy Money Can Buy"), deram a George W. Bush, o grande transgressor do sistema mundial, a margem "vencedora" que foi elemento chave na lamentável eleição presidencial de 2000. Dos cerca de 4,4 milhões de americanos que estão privados de direitos devido a uma situação criminal passada ou actual, "espera-se", notam os peritos, "que respeitem a lei (e claro está, são frequentemente sujeitos a penalidades significativamente mais severas, enfrentando um nível mais alto de exigência, do que os não-criminosos). Espera-se também que eles paguem impostos ao governo, e que sejam governados por funcionários eleitos. Ainda assim, eles não têm qualquer direito formal de participarem na escolha dos seus governantes nem nas políticas públicas que estabelecem o destino das despesas governamentais", inclusive as dezenas de milhares de milhões de dólares que o governo americano destina ao encarceramento maciço. Com os mecanismos tremendamente diluídos e qualificados da democracia, conhecidos como o processo de votação americano, muitos dos "elementos criminosos" estão proibidos de apontar seja o que for que diga respeito àquelas políticas que os marcaram para toda a vida. Tudo isto, numa versão moderna da pratica medieval de "morte civil", negando a lei e conduzindo um segmento considerável da população a uma "perda completa dos direitos de cidadania". Ao mesmo tempo, é importante ter em conta a percentagem dos prisioneiros relativamente à população, e depois analisar a representação política (de acordo com as regras políticas distritais) e relacioná-las com a distribuição dos fundos estatais e federais, não para as suas comunidades de origem (desproporcionalidade urbana) mas para as regiões e comunidades (desproporcionalidade rural) que são anfitriãs de prisões. Uma investigação de The Chicago Reporter -- uma excelente revista local de negócios públicos -- concluiu que, considerando a intercepção dos aspectos relacionados com o encarceramento maciço, com a geografia das instalações prisionais, com as regras políticas distritais, e com os procedimentos orçamentais federais, serão despendidos por Chicago quase 88 milhões de dólares em subsídios federais, entre 2000 e 2010 (ver Molly Dugan, "Census Dollars Bring bounty to Prison Towns"). A COR DA PRISÃO NUMA NAÇÃO DE EX-CONDENADOS Sejamos claros, porém, sobre quem são precisamente os mais propensos a serem privados de direitos socio-económicos e políticos devido ao encarceramento e aos correspondentes estigmas criminais. Para além da enorme magnitude deste assunto, o aspecto que tem mais impacto na prisão americana e no "boom" da sua supervisão criminal, é a sua pesada natureza racial. Com o aumento da população penal, esta foi ficando significativamente menos caucasiana: os brancos não-hispanicos representavam 42% dos ocupantes das prisões estaduais em 1979, mas no final do século XX já eram menos de um terço. Um grupo é especialmente atingido: os negros são 12,3 por cento de população dos EUA, no entanto representam mais de metade dos cerca de 2 milhões de americanos actualmente atrás das grades. Entre 1980 e 2000, o número de homens negros presos aumentou cinco vezes (500 por cento), ao ponto onde, como o "Justice Policy Institute" recentemente (2002) informou, de haver mais homens negros atrás de barras do que matriculados nas faculdades ou universidades dos EUA. Num dado dia, Chaiken informou que 30 por cento dos homens afro-americanos com idades compreendidas entre os 20 e 29 anos estão sob supervisão de correccional, isto é, em instalações prisionais, em situação de acusação de crime ou ainda em liberdade condicional. A taxa de encarceramento para os afro-americanos é de 1.815 por 100.000, comparados aos 609 por 100.000 para os latino-americanos, 99 por 100.000 para asiático-americanos, e 235 por 100.000 para brancos americanos. Para os homens negros adultos, a taxa de encarceramento representa o incrível valor de 4.484 por 100.000, comparando com o de 1.668 por 100.000 para os homens hispânicos e os 1.318 por 100.000 para os homens brancos. Cerca de um em cada dez prisioneiros de todo o mundo é um homem afro-americano. Em meados de 1999, 11 por cento dos homens negros dos EUA entre os 20 e os 30 encontravam-se na prisão, assim como 33 por cento dos negros que abandonaram a escola secundária. Especialmente deprimente é um modelo estatístico usado pela Agência de Estatísticas de Justiça acerca do século XXI para determinação numa base étnica e racial, da probabilidade de os indivíduos virem a ser encarcerados durante a sua vida. Baseado em taxas actuais, prevê-se que o jovem homem negro com 16 anos de idade em 1996 tenha 29 por cento de possibilidade de passar algum tempo na prisão durante a sua vida. A correspondente estatística para homens brancos na mesma faixa etária, era 4 por cento. De acordo com estas revelações, é fácil prever elevados altos encarceramentos ao nível dos estados, tanto em números tanto absolutos como relativos, a partir de população negra desproporcionalmente grande. Também convém notar que a raça é de facto o único factor significativo que determina quais os estados que negam direitos de voto a infractores e ex-infractores. Assim, quanto maior for a composição negra da população prisional de um estado, mais provável será esse estado privar de direitos o seu oficialmente estigmatizado "elemento criminoso". Um ensaio recente publicado na New Left Review pelo sociólogo de esquerda Loic Wacquant, intitulava-se: "Da escravatura para o encarceramento maciço". A experiência de encarceramento é tão omnipresente e tão comum na experiência afro-americana hoje em dia que Loic Wacquant pode tornar obrigatório denominar como de "prisão em massa" a fase histórica actual, como sendo o desenvolvimento normal na evolução do racismo estrutural nos Estados Unidos. Enquanto isso, os criminólogos Dina Rose e Todd Clear identificaram alguns bairros de negros em Tallahassee onde todos os residentes podem nomear pelo menos um amigo ou um parente que foi encarcerado. Em comunidades urbanas predominantemente negras de todo o país, o encarceramento é tão difundido e tão trivial, que se tornou naquilo que Chaiken classifica como "quase uma experiência de vida padronizada". O fenómeno de desproporcionalidade elevada no encarceramento maciço de negros está carregada de uma ironia histórica brutal. Enquanto o discurso corrente americano sobre assuntos raciais tornou-se oficialmente inclusivo -- até David Duke tem agora que afirmar que não é anti-negro -- os EUA estão a inundar por todo lado um crescente número de celas prisionais com uma maré também crescente de cidadãos negros, os quais são vigiados sobretudo por guardas brancos. Existe uma falsa crença difundida entre os brancos -- ironicamente reforçada pelo fim da exposição pública aberta do preconceito racial -- de que os afro-americanos têm iguais e daltónicas oportunidades relativamente aos brancos. "Como a América branca vê as coisas desta forma", escreve Barbara Diggs-Brown e Leonard Steinhorn no seu esclarecido "By the Color of Their Skin: the Illusion of Integration and the Reality of Race" (2000), "desenvolveu-se todo um esforço para atrair os negros ao estilo de vida americano, e agora eles têm o seu próprio… Nós recebemos a mensagem, nós fizemos as correcções [reclamam os americanos brancos, P.S.] -- Vamos em frente com isto". Correcções, sem dúvida: como sugere a demografia racialmente enviesada do sistema "correccional" americano; os EUA, na presente idade do encarceramento maciço, estão na transição da penumbra colorida para a nobre noção cristã de que nós somos "os protectores do nosso irmão" [hoje "nossos irmãos"]. UMA REALIDADE ORIENTADA POLITICAMENTE Numa primeira abordagem, qualquer observador externo de outro país ou planeta que analise os números do sistema prisional dos EUA, concluirá que este país teve durante as últimas décadas um recrudescimento significativo dos crimes violentos, cometidos de um modo desproporcionado por afro-americanos. Esta seria também a conclusão razoável a retirar da medida extrema (considerando os padrões globais americanos tanto em termos históricos como contemporâneos) que tem vindo a ser utilizada durante os últimos 25 a 30 anos: o encarceramento maciço e racialmente díspar. Contrariamente à retórica "lei e ordem" cultivada por muitos políticos, não se verificou porém o incremento de nenhum padrão claro e consistente de criminalidade, inclusive de criminalidade violenta, que pudesse explicar a tendência crescente dos números do sistema prisional dos EUA. "Desde 1980", observa o jornalista Vince Beiser, "a taxa criminal em termos nacionais manteve-se em níveis baixos, ao que se seguiu uma subida, tornando depois a baixar, mas apesar disso a taxa de encarceramento foi subindo implacavelmente todos os anos". Durante os anos noventa, na realidade, a taxa de encarceramento dos EUA subiu dramaticamente apesar da taxa criminal ter caído graças em larga medida ao forte crescimento económico verificado durante o "boom Clinton". "O crime está a diminuir", observa o bem considerado diário de negócios Illinois Issues, "mas a população prisional não está". A taxa criminal dos negros tem sido constantemente mais elevada do que a taxa criminal branca, o que está de acordo com a mais baixa condição socio-económica dos negros que por sua vez está relacionada com níveis de stress mais elevados, défice social e estruturas familiares débeis, mas ao analisar o aumento da criminalidade negra, não existe nenhuma evidência da algo que possa explicar, mesmo que remotamente, o rápido aumento da taxa de encarceramento dos negros. O factor central é que o sistema prisional dos EUA "mudou", nas palavras de Pager, "de uma pena reservada aos piores criminosos, passou-se a aplica-la de um modo extensível a uma maior gama de crimes e a uma mais alargada faixa da população. As tendências recentes em política criminal conduziram à imposição de sentenças mais severas e mais longas para uma gama mais extensa de ofensas, implicando nisso uma rede de intervenção penal cada vez mais alargada". É em grande medida devido a esta situação que a maioria dos americanos que entram no espaço inerentemente violento da "nação prisão" dos EUA (onde 7 por cento dos ocupantes sofrem estupro), estão lá por crimes não violentos. Entre 1980 e 1997, os relatórios do Instituto de Política da Justiça (JPI) informam que "o número de transgressores violentos enviados para uma prisão estatal quase duplicou (para cima de 82 por cento)", mas "o número de transgressores não violentos triplicou (mais de 207 por cento)". As pessoas que cometeram crimes não violentos correspondem a mais de três quartos do enorme aumento de prisioneiros registados no país entre 1978 e 1996. As estimativas do JPI indicam que existe mais de 1,2 milhão de criminosos não violentos actualmente atrás de barras das instalações prisionais dos EUA. Estas tendências marcaram as comunidades negras de uma forma muito profunda. Enquanto os negros constituem apenas 15 por cento de consumidores ilícitos de droga, eles correspondem no entanto a 37 por cento dos presos acusados de crimes relacionados com a droga. Eles representam 42 por cento dos presos em instalações prisionais federais acusados de crimes de droga e 62 por cento dos presos em prisões estatais. Não surpreendentemente, os transgressores brancos relacionados com a droga têm muito menos probabilidade de passar algum tempo na prisão do que a sua correspondente contraparte étnica. De acordo com o relatório emitido em 2000 pela prestigiosa organização de direitos humanos Human Rights Watch, os negros constituem mais que 75 por cento do total dos prisioneiros relacionados com crimes de droga nos EUA, em apenas um terço dos estados. No meu estado, Illinois, a Human Rights Watch informou que "os negros constituíam uns surpreendentes 90 por cento de todos os transgressores de droga que deram entrada nas prisões de Illinois" em 1996. Em 2000, a percentagem tinha caído apenas para 89 por cento, fazendo de Illinois o segundo estado dos EUA em termos deste parâmetro chave que é a disparidade racial. A HISTÓRIA DE CHICAGO Procurando mais sobre estas obscuras realidades, verifica-se que existe hoje em dia um crescimento de uma respeitável literatura académica e política acerca do "desequilíbrio racial no encarceramento maciço" -- literatura académica liberal e de fundações sobre terminologia da prisão estatal racista -- e acerca dos assuntos relacionados com a criminalização maciça dos negros e da "reinserção do prisioneiro". Esta literatura suporta títulos tão dramáticos como "A Raça para Encarceramento", "Nação Encarceramento", "Encerramento da América", "Nação Prisão", "A Cela excede a Sala de Aula", "Viagem na Nação Prisão", "Ligar à Cor", e outros que tais. O meu estudo editado no ano passado faz parte desta literatura. Intitulado "O Círculo vicioso: Raça, Prisão, Empregos e Comunidade em Chicago, Illinois e na Nação", está cheio de pormenores chocantes acerca de, como e porquê o sistema penal se tornou uma parte central da estrutura institucional que produz as desigualdades raciais e socio-económicas nos EUA. Entre as piores revelações temos:
 Em Junho de 2001 verifiquei que havia mais quase 20.000 homens negros nas prisões estatais de Illinois do que homens negros matriculados nas universidades deste estado. Havia mais homens negros nas instalações prisionais do estado acusados apenas de faltas relativas a droga, do que o total de homens negros matriculados em programas de graduação nas universidades do estado.
 Em 2000, verifiquei e informei que a população prisional de Illinois havia atingido perto de 46.000 presos e o número de instalações correccionais tinha crescido rapidamente para 27. O aumento da população prisional nas prisões estatais de Illinois (IDOC), onde 94 por cento são homens, tem uma sugestiva e forte proximidade com a diminuição do número de famílias (predominantemente geridas por mulheres) que recebem assistência familiar pública monetária deste estado -- 46.801. Nove anos antes, o número de prisioneiros em Illinois constituíam menos de 15 por cento das famílias com assistência social do estado. A secção do relatório na qual incluí estes dados intitula-se "Do estado Providência ao estado prisão".
 Descobri que os ex-prisioneiros negros masculinos equivalem em número a cerca de um quarto (24 por cento) da mão-de-obra negra masculina da região Chicago. Os ex-infractores negros masculinos equivalem em número aos 42 por cento da mão-de-obra negra masculina da região de Chicago.
 Descobri que dez dos códigos postais de Chicago habitados predominantemente por negros (incluindo cinco da zona oeste da cidade e quatro da zona sul) receberam 25 por cento dos prisioneiros libertados do Illinois nos anos 2000, 2001, e 2002. Cheguei à conclusão de que os prisioneiros libertados voltam às mesmas comunidades carenciadas de onde vieram antes do seu encarceramento. Dos 15 primeiros códigos postais que recebem prisioneiros libertados, 10 estão entre os mais pobres da cidade, 11 entre os 15 regiões com mais desemprego, 10 entre as 15 regiões com os mais baixos salários, e 10 entre os códigos postais da cidade de Chicago onde o número de alunos que terminam o ensino secundário é mais baixo.
Notei que devido ao encarceramento maciço, existe uma significativa disparidade racial no tocante ao mercado de trabalho e questões relacionadas com o desenvolvimento económico, tanto em Illinois como ao longo de todo o país. O boom da construção de instalações prisionais -- alimentado pelo "mercado" crescente de transgressores negros -- representa uma importante fonte geradora de trabalho, e de efeitos multiplicadores na economia local, para as comunidades "pobres" de Illinois anfitriãs das prisões. Devido à dicotomia racial e económica, às relações políticas e aos impactos orçamentais no estado de Illinois, argumentei em "O Círculo Vicioso" na necessidade de encarar o encarceramento maciço com medidas contidas num pacote de "Reparações de Reversão Racial" -- uma forma de intervenção estatal radical para promoção da transferência de riqueza, do recenseamento, dos salários, tudo através de um esforço governamental, promovendo a devolução do direito de votar, e mesmo uma campanha apoiada financeiramente, não para o negro, mas dirigida à comunidade branca. Tal como no tempo da escravidão (inclusive o infame compromisso dos "três-quintos" que permitia o escravo ser considerado como um bem móvel negro na sua representação no Congresso) é duro ceder, mas entretanto os prisioneiros negros vão funcionando mais como matéria-prima alimentando o sistema, do que como mão-de-obra subordinada ao moderno sistema encarceramento maciço. O ESTADO DA PRISÃO RACIAL X MITOLOGIA NACIONAL Meu estudo teve boa aceitação na comunidade negra de Chicago assim com entre os intelectuais e activistas que trabalham para reverter o sistema de encarceramento americano. Porém, não alcançou um reconhecimento semelhante, mesmo que remoto, nos media, nem sequer a nível local. Penso que esta resposta indiferente dos media é bastante típica para aqueles de nós que escrevem acerca e contra a prisão estatal racista. Existe um épico afastamento entre o seu significado (bem entendido pela comunidade negra em especial) e a atenção que correntemente lhe é concedida, especialmente quando é referido que George W. Bush chegou ao poder -- com consequências históricas -- graças à negação dos direitos de voto a dezenas de milhares de ex-infractores negros (reais e supostos) na Flórida. "O FAROL DA LIBERDADE" As razões para este afastamento são complexas, mas parte do problema relaciona-se com o poder de filtragem da ideologia dominante, cujos elementos centrais são compartilhados pela classe política americana que alberga os políticos e os proprietários e gestores das corporações dos media nacionais. Toda a história da condução da política racista sobre o encarceramento maciço, e da sua relação extrema com o paradigma dos negros como criminosos, está profundamente distorcida daquilo que é o cerne da questão, sobrepondo os mitos americanos, que os media dominantes não têm interesse em desafiar, particularmente após o 11 de Setembro, a partir do qual se desenvolveu um intenso nacionalismo e a correspondente mobilização doméstica favorável à guerra imperial permanente. Um tal mito sustenta que os EUA são a pátria natural, epítome e sede da liberdade, "o farol para o mundo do que deveria ser o modo de vida" -- para citar o senador texano Kay Bailey Hutchinson quando no outono de 2002 justificou o seu apoio à invasão planeada pela Casa Branca ao Iraque. A frase de Hutchinson condensa a convicção difundida entre a classe política de que os EUA são a incorporação de existência humana no seu melhor -- um Deus -- e/ou historicamente prevista como sobrejacente a todos, aquele que "se levanta mais alto e vê mais longe" do que o resto do mundo, tal como Madeline Albright referiu à alguns anos. Esta convicção certamente influenciou uma declaração feita por James F. Dobbins, director do "Rand Corporation's Center for International Security and Defense Policy" e enviado especial da anterior administração da Casa Branca durante as intervenções dos EUA na Somália, Haiti, Bósnia, Kosovo, e no Afeganistão. "O debate partidário" nos EUA, "terminou", proclamou Dobbins imediatamente antes dos EUA invadirem o Iraque. "As direcções de ambos os partidos estão perfeitamente preparadas", referiu Dobbins, "para usar as forças armadas americanas na reforma os estados párias e na reparação das sociedades desconcertadas". Para conter este tóxico narcisismo nacional-imperialista e mostrar que os EUA são eles próprios uma "sociedade fracturada", os activistas podem recorrer empiricamente a um conjunto de relações fortes, tais como a desigualdade, a pobreza, as mortes com armas, os suicídios, a insegurança, e por aí adiante. Mas poucos são os trunfos que se podem retirar da estatísticas sociais que se debrucem sobre dados relacionados com o encarceramento, quando isso vai deitar por terra a lenga-lenga habitual da excelência americana de que se vangloriam as suas elites, particularmente a parte dominante que identifica os EUA com a "liberdade". Mesmo que os media quisessem, ser-lhes-ia difícil dizer a verdade num tal contexto de contornos de terror contra-doutrinários, ao mesmo tempo que a elite no poder dos EUA, agressivamente nacionalista -- dominada pela outrora "respeitável" e tendencialmente radical ala direitista -- está a afirmar a si própria e ao mundo que os EUA são o "único modelo sustentável" de uma sociedade de excelência, especialmente escolhida por Deus e pela História para exemplificar e mesmo, exportar as suas superiores virtudes de liberdade. "A AMÉRICA DALTÓNICA" Um segundo grande mito desafiado pela história real do encarceramento em massa e sua ligação com a permanente marca de criminoso para milhões de cidadãos e ex-cidadãos afro-americanos, é evidentemente a noção corrente de que os EUA se tornaram, propositadamente e intencionalmente, numa nação pós-racista daltónica, onde as correcções, que são entendidas como acções afirmativas, já não são necessárias; isto com o propósito de evitar mencionar especificamente as reparações. Mesmo John McWhorter, do Manhattan Institute, que fez uma carreira lucrativa argumentando que a causa principal das dificuldades persistentes dos negros numa América pós-racista é a cultura negra "auto-sabotadora", reconhece agora que a discriminação racial continua a ser um problema no sistema de justiça criminal hiper-encarcerador dos EUA. O ALVO SELECTIVO DO "MONSTRO" GOVERNAMENTAL Outro mito que quero mencionar é a amplamente anunciada e muito lamentada noção de um estado impotente e sem dinheiro -- a ideia de que o governo realmente não pode fazer mais nada; que não tem a força, a legitimidade, o dinheiro, a possibilidade para levar a cabo objectivos fundamentais. Diga isso à massa dos prisioneiros e ex-prisioneiros do país. Para entender o último mito, é preciso perguntar que objectivos o governo americano pode e não pode levar a cabo. Na nação mais rica do mundo, o sector público tem falta de dinheiro para estabelecer uma correcta educação para todas as crianças do país. Faltam os recursos para proporcionar uma cobertura universal de saúde, deixando 42 milhões de americano sem seguro médico básico. Não pode dar subsídios de desemprego às pessoas desempregadas. Falta, ou dizem que falta, o dinheiro para promover uma reabilitação adequada e estruturas de reinserção para os seus muitos milhões de prisioneiros e ex-prisioneiros negros, marcados para toda a vida pelos seus antecedentes penais. A lista de necessidades cívicas e sociais não satisfeitas continua a aumentar. Ouçam, no entanto, o que o sector público pode pagar. Ele pode permitir-se gastar milhões de milhões em cortes de impostos que premeiam os 1% mais ricos sob o nome hipócrita de "estimulo económico". Pode gastar nas forças armadas muitas vezes mais do que o conjunto de todos os possíveis estados inimigos dos EUA, proporcionando um volumoso subsídio ao sector corporativo da alta tecnologia, incluindo milhares de milhões em armas e sistemas de "defesa" que não têm contrapartida significativa em qualquer ameaça real a que o povo americano possa estar sujeito. Pode dispor de centenas de milhares de milhões ou talvez mais de mil milhões de dólares com a invasão e ocupação de um país distante e devastado que apresenta um risco mínimo aos EUA ou mesmo para os seus vizinhos. E claro está, que se pode incapacitar e encarcerar uma boa parte de sua população, maior do que qualquer outra nação na história alguma vez já o fez, e gastar ainda centenas de milhões todos os anos em várias formas de corporações de sistemas de seguros de saúde e outros subsídios públicos rotineiros para a iniciativa "privada". Em resumo, o sector público americano é fraco e com constrangimentos monetários quando se trata de levar a democracia social até ao povo, mas essa situação inverte-se quando é para atender às necessidades dos ricos, da disparidade racial e do império. É importante termos presente esta distinção quando ouvimos pessoas como o republicano, defensor da redução dos impostos e estratego político, Grover Norquist, dizer que o seu objectivo -- e aqui cito Norquist – "é, em vinte e cinco anos, reduzir à metade o governo, reduzi-lo até um tamanho que o possamos afogar na banheira". Quando Norquist e os seus seguidores dizem que querem "matar à fome o mostro" do governo, eles dirigem os seus objectivos para algumas partes mal-nutridas do "governo", de um modo mais enérgico do que para outras. Eles estão muito preocupados em desmantelar as partes do sector publico que satisfazem as necessidades sociais e democráticas da maioria não abastada da populaça americana. Eles pretendem destruir aquilo que o recente sociólogo francês Pierre Bordieu chamou de "a mão esquerda do estado", isto é, os programas e serviços que encarnam as vitórias ganhas através de lutas passadas na procura da justiça e da igualdade. Eles querem preservar a mão direita do estado, as partes que fornecem serviços e segurança médica aos poucos privilegiados, e distribuir punições ao pobre utilizando o machado do orçamento. Os seus desejos estão agora a ser identificados. Debaixo da pressão de uma inexorável campanha política e ideologicamente bem-apoiada, conduzida às suas formas mais extremas por republicanos radicalmente regressivos e repressivos como Norquist, Newt Gingrich, e Karl Rove, o sector público está a ser esvaziado das suas positivas funções sociais e democráticas. Ele está cada vez mais a reduzir-se às funções de policiamento e de repressão, expandindo-se por caminhos, que estão para além da simples coincidência, e que são dirigidos para o assalto aos apoios e programas sociais. O objectivo é criminalizar e aprofundar a desigualdade social e os problemas sociais correspondentes, por meio de políticas auto-cumpridas de discrepância racial (racista), de vigilância maciça, de aprisionamento, e de encarceramento -- uma cópia perfeita de pátria dirigida para a militarização da discrepância racial (racista), do império global dos EUA e dos problemas subjacentes de âmbito social, político e económico. A bem organizada campanha conduzida pela direita para "matar à fome" a mão esquerda do governo, produz instrutivas disparidades na cobertura das notícias correntes. A media dominante cobriu o terrível "problema" que representa o suposto inchaço dos encargos com a assistência pública às famílias, concluindo que se tornaram de tal maneira insuportáveis, que será praticamente inevitável a penalização do "primeiro emprego" e das "reformas da assistência social" por volta de meados dos anos 90. No entanto os enormes problemas da sociedade e correspondentes questões orçamentais colocados por um maciço encarceramento, pela dispendiosa expansão dos serviços prisionais, pela gestão da liberdade condicional e do funcionamento dos tribunais e pelas correspondentes necessidades para retirar as pessoas do estigma prisional e criminal das margens da sociedade para as reintroduzir no mercado de trabalho e nas restantes áreas da sociedade civil, não são tidos em conta nas comparações usualmente feitas. Os media apenas evocam preocupações menores, não as relacionando com as comunidades negras, que são precisamente a mais atingidas pelas autoridades de justiça criminal dos EUA. A LIBERTAÇÃO DO MERCADO X ESTADO VILÃO O aumento da "discrepância racial no encarceramento maciço" também põe em causa o quarto grande mito americano, fortemente relacionado com o terceiro atrás referido. Esta lenda reivindica que, em termos políticos e ideológicos, o conflito dos dias de hoje situa-se entre a glória e a lógica do aumento da liberdade capitalista do suposto "mercado livre" por um lado, e por outro, a escuridão, o decrépito e decadente sector público. "O mercado", dizem-nos reiteradamente, é a resposta para os problemas de sociedade. Ela é muito diferente do inerentemente mau, irresponsável, e autoritário Estado que suprime a "liberdade" virtuosa de comércio irrestrito e de investimento -- o mundo magnífico da livre circulação de artigos, capital, e moeda. Este é um dos grandes contos de fadas dos nossos tempos. O conflito na política nacional real que importa hoje, assim como importou no começo da República e desde então para cá, não está entre o estado/política e o mercado/economia. Está entre um tipo (aristocrático e autoritário) de política pública e economia política, e outro tipo (social e democrático) de política pública e economia política. O primeiro tipo de política serve os interesses dos poucos privilegiados e que castiga os pobres como também muitos outros. Exclui aqueles que se encontram no fundo, exacerbando a sua dor e o seu estigma. O segundo tipo, mais à esquerda, serve as necessidades sociais e democráticas da maioria, servindo especialmente aqueles que são os mais prejudicados e os mais necessitados de ânimo e assistência -- em nome da equidade e da justiça. A situação explosiva da população de encarcerados e ex-infractores da América é uma excelente exemplo. Ninguém seriamente interessado em melhorar a condição da hiper-criminalização crescente da população urbana negra pode alguma vez acreditar que este grupo de pessoas irá um dia ser útil ao "mercado livre". Este mercado livre, "mas nem tanto", não está isento de responsabilidades na incapacitação que afectou as comunidades de bairro suburbanas, levando a que muitos dos seus residentes se entregassem ao mundo do "crime" (especialmente ao uso e comércio de droga) e, em primeiro lugar, ao sistema de justiça criminal (com a ajuda de uma atitude policial e condenatória racialmente desigual). Profundamente condicionado e moldado pela política pública do estado-capitalista ("comercial" e não-industrial), ele eliminou postos de trabalho na indústria que serviam de sustento àquelas comunidades, negando assim o acesso das pessoas das áreas pobres o acesso às comunidades mais abastadas onde se concentra o emprego e o conhecimento (a menos que também esses tenham desaparecido com a deslocalização para o estrangeiro, ou que tenham simplesmente sido eliminados). Paralelamente verifica-se que o mercado "livre" tem muito pouco para oferecer aos negros dos bairros pobres com antecedentes criminais. Esta população requer por isso intervenção pública no sentido de envolver e compensar directamente o seu trabalho e/ou encorajar ou convencer os empregadores na sua contratação. Esta é a terrível situação das pessoas deixadas para trás nas hiper-segregadas, profundamente empobrecidas, e selvaticamente desindustrializadas comunidades, originada pela extensa discrepância racial, pela globalização, e pelo apelo automático a uma agressividade pública e a uma intervenção governamental. A única questão pertinente é saber que tipo de intervenção vai ser adoptada: de esquerda ou de direita. Ora o encarceramento maciço racista, lançado sob a égide da ineficaz e dispendiosa Guerra à Droga, é precisamente uma intervenção de extrema direita, com implicações fascistas que podem aprofundar os ciclos interrelacionados de pobreza, desigualdade racial, violência, crime, desestabilização dos bairros pobres, abuso de drogas e desespero. Esta situação promove a perigosa criminalização das questões sociais, constituindo um espelho perfeito na projecção destes aspectos na política externa dominante do país, que se tem caracterizado pela exacerbação das crises globais e aprofundamento da violência através da militarização do mundo, intervindo em assuntos políticos e sociais. E funciona, é bom repetir, como método de inversão racial das reparações, transferindo uma parte substancial da riqueza das comunidades negras para as brancas, das quais temos ainda de esclarecer a sua situação estatística. OUTROS MITOS Existem outros mitos nacionais que se devem incluir numa discussão mais alargada a fim de se encontrarem meios para avivar as contradições da narrativa nacional dominante acerca do "encarceramento maciço racialmente discrepante", tais como:
 a noção de que um trabalho pesado e uma acção moral pessoal são factores determinantes para o estabelecimento da condição de vida pessoal de cada um;
 a ideia de que "o elemento criminoso" funda o seu comportamento numa análise de custo benefício "racional" de resultados, pesando a probabilidade e a severidade do castigo às suas decisões de cometer ou não acções ilegais;
 a noção de que o crime é implacável (um apêndice do tipo de confronto emocional "felicidade-violência" utilizado pelos media);
 a noção de que a "punição funciona" num esforço para travar o abuso da substância de problema;
 e a ideia falsa de que todos os americanos possuem igual autoridade face aos seus direitos e que estão igualmente sujeitos aos castigos infligidos pelo estado.
Esta última noção (há muito tempo ridicularizada pelo proletariado americano quando diz que o "dinheiro manda e os outros obedecem", tanto dentro como fora da sala de tribunal), é difícil de sustentar quando (a) as corporações faltosas são punidas muito ao de leve pelas suas práticas ilegais que eliminaram postos de trabalho e rapinaram poupanças de toda uma vida de dezenas de milhares de americanos (ou mais); enquanto (b) centenas de milhares de negros e de pobres americanos passam, de uma forma desproporcionada, tempos difíceis sob condições chocantes (inclusive com a ameaça endémica de estupro) devido a ofensas não violentas e especialmente relacionadas com os narcóticos.

POLÍTICA, IDEOLOGIA, E DISCURSO Existe um pequeno mistério ou mesmo um equívoco sobre o que se pode e deve fazer -- segundo uma perspectiva inclusiva minimamente social, democrática e racial -- para romper com o círculo vicioso do encarceramento maciço racialmente discriminatório. O padrão da ladainha "liberal" das soluções políticas minimamente razoáveis, está carregado de ideias que definem as questões básicas em termos sociais, democráticos, orçamentais, e de bom senso, incluindo:
1 a revogação de leis de condenação obrigatória, e o estabelecimento de novas estruturas para revisão e reformulação das condenações do estado levando os juizes a um uso mais efectivo de opções correccionais;
2 a criação de novos apoios e responsabilidades na prisão e pós-prisão para os prisioneiros e ex-prisioneiros libertados;
3 o fim da actuação de acordo com um perfil racial nas acções de tráfico, do policiamento de rua, da vigilância e das práticas racialmente díspares na acusação e condenação de casos de droga e outros tipos de ofensas;
4 a criação de uma nova focalização política e uma nova acção governamental que permita coordenar a transição da prisão para a vida laboral;
5 a eliminação de barreiras dispensáveis, e a criação de novas possibilidades e incentivos para empregos adequados aos ex-condenados;
6 investir em tratamento em vez de encarceramento. Num estudo exaustivo de pesquisa em ciência social que foi escandalosamente ignorado por todos, menos por alguns políticos nos EUA, durante quase uma década, a corporação conservadora RAND, chegou à conclusão de que cada dólar adicionalmente investido no tratamento do abuso de narcóticos, poupa aos contribuintes 7,46 dólares nos custos relacionados com o crime, a violência, e a produtividade perdida.
É evidente que a política é importante, mas é também uma grande parte do problema -- a razão porque estes passos políticos minimamente civilizados são tão difíceis de implementar -- porque ela é moral e ideológica, reflectindo e relacionando a criação e a manutenção das narrativas nacionais dominantes. Para retroceder a ineficiente e dispendiosa estratégia a que "Open Society" chama de "super encarceramento", nós necessitamos de políticas "firmes", especificas e cuidadosamente tratadas. Nós precisamos também de mudar -- ou melhor, de aprender a analisar de modo critico -- a superabundância dos venerados impingidores de regras que são os reaccionários shows televisivos e coberturas noticiosas, e acabar com o seu costume sórdido relacionado com a culpabilização das vítimas da sua radical experiência em "racializar o encarceramento maciço". O surgimento da "Nação Encarceramento" é uma deriva radical do estado, fortemente racista, e em parte mesmo fascista, e não o resultado directo de uma resposta trágica e inevitável do estado ao terrível comportamento de um numeroso "elemento criminoso" que precisa de ser punitivamente condicionado para agir racionalmente perante oportunidades supostamente importantes que irá enfrentar no glorioso mundo sem-estado, do daltónico capitalismo de mercado. No esforço a desenvolver para matar este monstro prisional de múltiplas cabeças, precisamos primeiramente nos libertar da tendência de não envolver ortodoxias doutrinais, e depois devemos de reavivar uma compreensão básica da necessidade de termos um governo com uma atitude construtiva e positiva (mão esquerda) através de uma acção decidida nas barreiras raciais socialmente construídas, de classe, de género e poder. Nós precisamos de retomar as rédeas das nossas vidas políticas e das nossas imaginações sociais e retira-las das mãos dos aristocráticos e autoritários bem-estabelecidos, que tomaram posse do discurso e da política pública, e os transformaram em instrumentos de privilégio e repressão. Os riscos não são pequenos, pois na presente situação, estamos em direcção a um Mundo Novo Heróico onde a guerra racista americana permanente e o império no estrangeiro, alimentam e reflectem no país a desigualdade racista e a repressão permanentes, ambos impostos pelas curiosas palavras de liberdade, mercado, e democracia.

Paul Street
Vice-presidente da "Research and Planning at the Chicago Urban League" e autor de "Empire Abroad", de "Empire and Inequality: America and the World Since 9/11", de "Still Separate, Unequal: Race, Place, Policy, and the State of Black Chicago " e de "The Vicious Circle: Race, Prison, Jobs, and Community in Chicago, Illinois, and the Nation"

http://resistir.info