sábado, setembro 30, 2006

Sangue e esperança

Depois de anos a aterrorizarem um povo ocupado, os regimes párias de Washington e Telavive podem finalmente ter encontrado quem lhes faça frente.

Lembram-se do Kosovo e do resto dos Balcãs arrasados? Lembram-se dos curdos no norte do Iraque? Quantos despachos comoventes essas crises geraram no ocidente, juntamente com outras quantas maldições aos seus atormentadores. De acordo com a minha memória, cada um deles foi chamado «a causa mais moral da nossa geração». Não havia dúvida, diziam os cruzados, entre o certo e o errado; eles estavam firmemente do lado do certo, juntamente com Blair, Clinton e os seus generais. Quão silenciosos estão agora estes cruzados, com a sua compaixão selectiva reservada comprovadamente para causas de estado, as “nossas” causas.

Perante os nossos olhos, o regime israelense (nunca é chamado regime, claro), armado e financiado pelos Estados Unidos, e apoiado pela Grã-Bretanha, está empenhado em destruir todo um país, matando deliberadamente civis, quase metade dos quais são crianças; e os cruzados estão tão calados como ratos ou ocupados a trabalhar arduamente na grande barragem da mistificação.

Detectei um deles ontem a contribuir para uma reportagem sobre Condoleezza Rice — a Ribbentrop moderna — na qual se dizia que ela havia «embarcado numa missão no Médio Oriente para tecer um plano de paz». Li aquilo duas vezes e perguntei-me como era possível para Rice (ou “Condi”) cumprir sua “missão” quando a missão descarada do seu governo era apoiar e colaborar agressivamente com os israelenses, fornecendo­‑lhes mesmo no meio da carnificina bombas guiadas de precisão e mísseis revestidos de urânio. O antigo cruzado não disse.

Detectei um outro cruzado a debater seriamente se o exército israelense ainda era um “exército moral”. Li aquilo duas vezes. Na minha experiência de guerra e do Médio Oriente, o exército israelense é um dos mais cobardes. Todos os dias os seus soldados humilham pessoas indefesas, idosos assustados e mulheres grávidas em barreiras nas estradas e agora os seus pilotos de F-16 despejam bombas de fósforo sobre famílias a fugir em veículos cambaleantes.

O ministro da Justiça israelense, Haim Ramon, disse que Israel havia «na realidade obtido a autorização para continuar as nossas operações» na conferência de Roma de 16 de Julho. Anteriormente, Blair e Bush haviam “dissuadido” a reunião do G8 de apelar a um cessar fogo. O que isto significa é muito simples. Em 1982, as grandes potências ficaram de lado enquanto os israelenses superintendiam o massacre de milhares de pessoas nos campos de refugiados palestinos de Sabra e Chatila, no sul do Líbano. As mesmas grandes potências estão agora a dizer: “Vão em frente, matem e massacrem até ficarem saciados. Dir­‑lhes­‑emos para parar quando pensarmos que já é bastante».

No Vietname, há muito tempo, ao explicar porque “nós venceremos”, um membro da Frente de Libertação Nacional disse-me: «Eles (os americanos) não podem matar­‑nos todos». Os invasores (a palavras quase nunca era utilizada no ocidente) fizeram o seu melhor e mataram ou provocaram a morte de mais de três milhões de pessoas. Os invasores dizimaram a resistência no Vietname do Sul, a FLN, mas não podiam matá­‑los todos, e acabaram por seu expulsos.

Não estou a desenhar um paralelo preciso: basta dizer que a resistência no Líbano, o Hezbollah, está a mostrar que eles, também, operam de acordo com a mesma máxima. A resistência ao poder rapace, aos crimes épicos de invasão (a que os juízes de Nuremberg chamaram o crime «supremo») é a humanidade na sua maior nobreza; contudo, o paradoxo adverte-nos que nenhuma resistência é bonita; que cada uma acrescenta a sua própria forma de violência a fim de expulsar um invasor (tal como os civis mortos pelos rockets do Hezbollah); e isto aplicou­‑se aos heróicos partisans na Europa, aos heróicos curdos e a esses iraquianos sem rosto, desprezados que têm tido êxito em desconjuntar a máquina homicida americana no seu país.

Mas há esperança. Depois de todos estes anos a aterrorizarem um povo ocupado, acabando por conduzi-lo ao desespero de ter de cometer as suas próprias atrocidades, os regimes párias de Washington e Telavive podem, apoiados por Blair (a quem a história julgará simultaneamente como ser desprezível e criminoso), podem, podem mesmo, ter encontrado quem lhes faça frente. Ou, se não durante toda a luta, no princípio dela.

Entretanto, o resto de nós deve exigir que aqueles que alegam um exercício responsável do cargo em governos “civilizados” rompam o seu silêncio cobarde e digam aos invasores para pararem a sua matança e irem­‑se embora agora.

John Pilger
http://www.infoalternativa.org/autores/pilger/pilger052.htm

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