quinta-feira, novembro 30, 2006

Contribuições

(para entender o que se passa no México)
Ditadura, diz o dicionário, é o "Governo que, invocando o interesse público, se exerce fora do quadro das leis fundamentais do país". Os dicionários nem sempre vão a par com a semântica; os factos não se compadecem com as palavras. Em Oaxaca, por exemplo, a população está sujeita a uma ditadura estatal de facto. O Executivo oaxaquenho, encarnado pelo governador Ulises Ruiz, representa um poder autoritário, classista, corrupto, corporativo, racista e caciqueiro que, carecendo de toda a legitimidade, utiliza os meios de repressão ao seu alcance, viola a paz social e agudiza a violência e a desordem em todos os espaços e níveis sociais. Apoiado a nível federal pelo presidente Vicente Fox, pelo seu espúrio sucessor, Felipe Calderón, e pelo Partido Acção Nacional (PAN), o sátrapa Ruiz, com o aval do seu partido, o Revolucionário Institucional (PRI), e contando com aliados no seio do poder empresarial, instaurou um regime de repressão que pratica a tortura, o desaparecimento e o assassinato de opositores pela via da acção violenta de grupos paramilitares e sicários a soldo, usando-os como componentes básicos de uma guerra suja típica do terrorismo de Estado. Com o apoio da Polícia Federal Preventiva, que actua como um exército de ocupação no seu próprio país, [Ruiz] mantém-se no poder mediante leis de excepção, num autêntico Estado de sítio. Na actual conjuntura, Oaxaca espelha a crise do sistema de domínio no México, todas as suas instituições incluídas, porque respondem aos interesses da classe no poder. É uma crise nacional, em que se está a pôr em causa todo um sistema económico, político, jurídico e social, que, fundado na sobre-exploração, na pilhagem, corrupção, impunidade, na fraude eleitoral e na negação da democracia, apenas se pode manter no poder por meio da repressão. Fazendo frente a este estado de coisas, surge há cinco meses a Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO), como um embrião de poder popular que se foi transformando de maneira acelerada, de um modelo de organização originariamente defensivo, numa proposta orgânica de tipo horizontal e de assembleias, onde, tendo por eixo uma ampla política de alianças e órgãos de direcção colectiva, se pratica a democracia directa. Trata-se de um movimento plural e diverso, participativo, autonómico, autogestionário, que, a partir de uma fecunda resistência civil através dos piquetes e barricadas, se foi autodeterminando e ganhando cidadania no exercício concreto da soberania popular. Mas, ao mesmo tempo, a APPO é também o resultado de um longo processo de acumulação de forças, produto das lutas comunais, regionais e sectoriais que se têm vindo a registar no território oaxaquenho. Subindo mais um patamar neste processo de luta, no seu congresso constitutivo, dias 10, 11 e 12 de Novembro, a APPO decidiu transformar a revolta popular numa revolução pacífica, democrática e humanista, tendo-se ainda aí definido o carácter anti-imperialista, anticapitalista e antifascista do movimento. Se bem que os seus objectivos imediatos sejam a queda de Ruiz, o fim da repressão e a saída da PFP do estado [de Oaxaca], a APPO, ao mesmo tempo, propõe-se também dar impulso à transformação profunda e transversal do actual regime autoritário, para que nasçam um novo pacto social e as necessárias reformas que permitam transformar as instituições e assentar as bases para a criação de uma assembleia constituinte que elabore uma nova Carta Magna com garantia da transparência, da prestação de contas e da revogação de mandato. Convém ter em conta que a estratégia de poder da plutocracia e dos seus aliados é impedir uma revolução popular e toda e qualquer mudança, por pequena que seja, que ameace os instrumentos básicos do seu domínio. O continuísmo no plano económico não pode separar-se do continuísmo no plano político, ainda que mudem as tácticas que se empregam dentro dessa mesma estratégia de poder. Tácticas que se resumem em desmobilizar e dividir o movimento popular, de modo a impor a política económica sem ter de recorrer, na medida do possível, ao exercício aberto e permanente da violência. A violência reaparece quando um conflito social ou sindical ataca a dita política, e recrudesce quando o ataque põe em causa os instrumentos do poder. Exemplos disso são a Sicartsa, Atenco e Oaxaca. Nestes casos a classe dominante esquece-se por completo do quadro de legalidade que havia imposto. Não há que confundir governo com poder. E tão pouco ignorar que o mais provável é que a oligarquia se oponha pela violência às mudanças de que Oaxaca e o país necessitam. À medida que o povo for aprofundando os seus objectivos e radicalize as suas movimentações, os senhores do dinheiro aumentarão a violência da repressão. É um processo determinado pelo ascenso da combatividade das massas e pela escalada repressiva que lhe é inseparável. Um processo de mudança radical é sempre um ininterrupto processo de acumulação de forças. Dada a actual correlação, a tarefa e a táctica principal é a de continuar a acumular forças políticas e sociais, não de maneira passiva mas no combate, tratando simultaneamente de fazer brotar a consciência política, de impulsionar formas de organização fundadas na solidariedade e na participação para a defesa dos interesses do povo, de fomentar direcções colectivas. Estas formas organizativas constituem germes de poder popular, tal como os que existem nas autonomias zapatistas e os que se estão a forjar na comuna de Oaxaca. Numa etapa qualitativamente superior, de duplo poder, a multiplicação desses germes, complementada por uma orientação política, possibilitará a constituição de um pólo oposto ao do actual Estado plutocrata, e estará então próxima a possibilidade de construir uma república democrática e humanista tal como a desejam milhões de mexicanos. Só então haverá pátria para todos.
Carlos Fazio
http://resistir.info/

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