quarta-feira, fevereiro 28, 2007

Anarquismo, Individualismo e Coletivismo

O problema central das teorias anarquistas está muito mais na dificuldade em lidar com a contradição entre individualismo e coletivismo do que numa suposta incapacidade de aplicação de seus princípios à realidade objetiva. A resposta talvez esteja na tecnologia.

O que chamamos de anarquismo, sempre transitou numa certa zona nebulosa entre as idéias individualistas, das quais derivou o moderno capitalismo, e os princípios igualitários e coletivistas, presentes principalmente no cristianismo primitivo, das quais derivaram várias modalidades de socialismo.

De fato, sabemos que Pierre-Joseph Proudhon foi bastante influenciado por ambas as idéias. Em uma cronologia de sua vida e obra, somos informados que ele em 1828 se dedica a numerosas leituras. “’Os meus verdadeiros mestres,’ declara em 1848 ao amigo J.-A. Langlois, ‘quero dizer aqueles que fizeram nascer em mim idéias fecundas, são em número de três: a Bíblia em primeiro lugar, Adam Smith em seguida e finalmente Hegel’”. (1)

Não devemos nos surpreender que o patriarca supremo do capitalismo e do liberalismo econômico tenha servido de inspiração ao homem que Bakunin designava como “o mestre de todos nós”.

Na realidade, para a ortodoxia vigente no seu tempo, Adam Smith era um subversivo. Sua idéia básica de que os homens deviam se guiar pelos seus próprios interesses, e de que os regulamentos e governos, só podiam atrapalhar o desenvolvimento da sociedade, desagradavam simultaneamente à igreja e aos incontáveis monarcas despóticos da época.

Mas, notamos que esta é de fato, a mesma conclusão a que chega Proudhon, a diferença é que Smith nunca ousou militar politicamente, sua obra prima “A Riqueza das Nações”, apesar de criticar abertamente as medidas tomadas por certos monarcas, evita prudentemente criticar os próprios monarcas. Já Proudhon é um homem da revolução francesa.

Para ele, a questão política pode ser discutida abertamente. A propriedade questionada, o direito e mesmo a necessidade dos governantes era matéria em aberto. Essas questões, Smith não podia abordar, por razões óbvias. Suas críticas, no entanto, sempre que possível, são dirigidas a todo tipo de privilégio injustificado.

Notamos mesmo que Smith critica sem rodeios as desigualdades econômicas de seu tempo: “As leis das corporações (de oficio), porém, restringem menos a livre circulação do capital de um local para outro do que a do trabalho; é sempre muito mais fácil a um rico comerciante obter privilégio de comerciar numa cidade corporativizada do que a um pobre artífice trabalhar nela”.(2)

Por outro lado, não podemos deixar de notar que, ao contrário dos seguidores de Smith, como David Ricardo, Proudhon é claramente sensível à sorte dos pobres. Ao contrário de Ricardo, que condena explicitamente qualquer intervenção a favor dos “perdedores”, os seguidores de Proudhon, principalmente Bakunin, propõe idéias claramente coletivistas.

Não resta dúvida de que as propostas “mutualistas” e cooperativistas de Proudhon são uma tentativa de resolver o dilema causado pelas conseqüências do individualismo e as aspirações de fraternidade humana vindas das páginas dos evangelhos.

Daí para á frente, enquanto o liberalismo de Adam Smith é gradativamente apropriado pela burguesia, agora cada vez mais triunfante, o socialismo utópico e de fundo cristão, é apropriado pela elite intelectual também cada vez mais liberta das amarras do passado.

As duas correntes assumem pontos de vista claros. Os liberais defendem a liberdade individual, mesmo que isso sacrifique qualquer princípio de igualdade. Os socialistas “científicos” defendem a igualdade a qualquer custo, mesmo que a conseqüência seja a virtual eliminação da liberdade.

Ao romper com Marx, os anarquistas acabam ficando numa posição intermediária. Proudhon ao advertir Marx para que “não nos tornemos chefes de uma nova intolerância, não nos apresentemos como apóstolos de uma nova religião, mesmo que seja a religião da lógica, a religião da razão”, (3) assume uma indiscutível superioridade moral.

A partir daí, os anarquistas se sentem livres para criticar tanto os rumos do liberalismo econômico e as flagrantes injustiças daí decorrentes, como para denunciar o brutal autoritarismo presente no “socialismo real”. E o fazem sempre que podem. Em resposta, são cobrados pelo fato de não apresentarem nenhuma proposta concreta, seja para a superação do capitalismo, seja para a implantação de um socialismo libertário.

Os anarquistas lembram que tanto liberais como socialistas criticavam o governo, mas agora: “Todos contam com o governo: os liberais, ostensivamente, para preservarem a liberdade, mas na verdade para impedirem a igualdade; os socialistas, ostensivamente, para preservarem a igualdade, mas na verdade para impedirem a liberdade”.(4)

Mas o que de fato os anarquistas querem? Segundo Nicolas Walter: “O traço essencial da sociedade que os anarquistas querem, é que ela será o que os seus membros dela quererão fazer. Não obstante, é possível dizer o que a maioria deles gostaria de ver numa sociedade livre, lembrando nós que não há linha oficial, como de modo idêntico não há meio de reconciliar os extremos: o individualismo e o comunismo”. (5)

Em muitos casos os anarquistas se definem de forma solene: “Somos liberais, mas mais que isso; somos socialistas e mais que isso”.(6) É uma frase e tanto, mas como traduzi-la na prática. É notório que o liberalismo e sua filha dileta, a globalização neoliberal, apenas vem aumentando as desigualdades, gerando desemprego e miséria. O destino do socialismo autoritário dispensa comentários sobre seu retumbante fracasso.

Seria essa a oportunidade histórica do anarquismo? Talvez, mas não se pode deixar de lado o problema de “reconciliar os extremos”. Para isso é necessário o enfrentamento corajoso do desafio da tecnologia. O socialismo autoritário, ao não conseguir superá-lo, fez com que as populações a ele submetidas, e que eram mantidas na igualdade da pobreza e do racionamento, se lembrassem súbita e desordenadamente da liberdade.

O sistema capitalista global, ao se valer da tecnologia apenas para maximizar os lucros do capital, promove o desemprego crônico em escala planetária, pela substituição maciça de trabalhadores por robôs e computadores. Cedo ou tarde a contradição desse sistema irá se fazer presente, pois se o bom e velho proletariado pode ser substituído como fator de produção, não o pode enquanto consumidor.

Nesse caso, o desafio real é colocar a tecnologia a serviço de todos os membros da comunidade global. Se a tecnologia puder libertar o homem do trabalho ao invés de excluí-lo do processo de produção e privá-lo de renda, a antes insolúvel questão, representada pelo binômio “igualdade-liberdade”, poderá ser resolvido.

Aqui podemos voltar à afirmação de Adam Smith: “o desejo de alimento é limitado, em cada homem, pela estreita capacidade do estomago humano, mas o desejo de conforto, de ornamentos da casa, de roupas, de aparelhagem e de mobiliário parece não ter limite ou fronteira certa”. (7)

Ora, os partidários do coletivismo, consideram o Estado imprescindível porque o ser humano precisa comer, ter roupas para se vestir e se agasalhar, ter abrigo para morar, etc. Nisso todos os seres humanos são iguais, donde concluem que os desejos de “conforto e ornamento”, são desnecessários e anti-sociais.

Os partidários do individualismo argumentam que é justamente no desejo de “conforto e ornamento” que o ser humano manifesta sua liberdade e sua individualidade. Por isso o Estado deve existir para garantir aos que podem, desfrutar de seu patrimônio e realizar seus desejos sem ser perturbados.

Mas, ao contrário da época em que as teorias políticas convencionais foram formuladas, tanto a satisfação do “estomago” quanto à de “conforto e ornamentos”, dependiam de trabalho árduo e monótono de uma parcela imensa da humanidade. Portanto, a igualdade só podia existir caso as necessidades não passassem muito do simples alimento, ou a liberdade de desfrutar de conforto ficasse restrita a muito poucos.

Se a tecnologia puder garantir os meios necessários para satisfazer as necessidades básicas, e ainda algumas supérfluas, do ser humano, a igualdade será uma realidade. Por outro lado, o tempo livre e a criatividade, poderão ser usados com toda a liberdade para as demais ambições, que como já indicava Smith “não parece ter limite ou fronteira certa”. E é muito bom que não tenha mesmo.
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Notas:

(1) PROUDHON, Pierre-Joseph – Do Princípio Federativo – Ed. Imaginário – Pág. 21
(2) “Os Pensadores” – Abril cultural – Vol. XXVIII – Pág. 116
(3) Carta a K. Marx, 17 de Maio de 1846
(4) WALTER, Nicolas - Sobre o Anarquismo
(5) Idem.
(6) Idem.
(7) “Os Pensadores” – Abril cultural – Vol. XXVIII – Pág. 340
http://lauromonteclaro.sites.uol.com.br

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