quarta-feira, novembro 26, 2014

CELEUMA DAS DILIGÊNCIAS

Que a Justiça não é propriamente o maior orgulho dos portugueses, já se sabe. Antes pelo contrário. Os portugueses nem mostram a Justiça a ninguém. Se aparece aí alguém de fora e pergunta pela Justiça, os portugueses dizem que ela saiu. E se esse alguém diz que espera, os portugueses dizem que não pode ser, porque ela saiu para uma viagem de solitário pelo Atlântico num veleiro de quatro metros.
É este o orgulho que os portugueses têm na sua Justiça, que é demasiado lenta e muito pouco fiável. Ou melhor, “diz-se” que é demasiado lenta e muito pouco fiável, pois a maioria dos portugueses também nunca a viu porque não tem dinheiro para os bilhetes. É mais barato apanhar um avião para ir ver uma ópera a Milão do que ir ali ao lado pedir Justiça. Mesmo quando se tem razão, que seria um pormenor relevante se a Justiça tivesse pachorra para ouvir as pessoas. Em vez disso, a Justiça deixa-as desabafar e depois prega sempre com o bordão em quem dá menos luta, que é para o assunto ficar por ali.
Ora, como se não bastasse o desgosto que os portugueses têm com a Justiça, nem quando aparentemente ela está a funcionar os portugueses podem ser felizes, pois há sempre alguém a arguir vergonhas. “Isto é uma vergonha, aquilo é uma vergonha, é tudo uma vergonha”.
O caso mais recente é, como não podia deixar de ser, a detenção de José Sócrates. Há quem diga que foi uma vergonha, sobretudo pelo espectáculo que a Justiça montou. Vamos lá ver uma coisa: É possível deter um ex-primeiro-ministro para interrogatório sem se ser espectacular? Como? O juiz Carlos Alexandre chegava ao pé de Sócrates ao volante de um táxi e dizia-lhe “entre, já lhe explico” e depois interrogava-o às voltas pela cidade. Era isto? Ou Sócrates vestia-se de mulher e partiam os dois em lua de mel. Isso então era o ideal, porque nem o interrogavam em território nacional, aí é que ninguém sabia mesmo de nada.
Bom, mas há quem diga que nem sequer é preciso prender para ouvir. Na verdade, convidar para um chá era mais correcto, mas em casos de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais há questões que não podem seguir as regras da boa educação e em que é preciso ouvir o mais rapidamente possível os envolvidos, impedindo-os de contactos entre eles. Isto é elementar. Não é telefonar para um suspeito de corrupção e dizer-lhe “passe aqui no Tribunal, gostava de trocar umas impressões consigo aqui sobre uns dinheiros que supostamente meteu ao bolso, mas veja lá quando é que pode, pois eu não quero de maneira nenhuma condená-lo já em praça pública”.
Também se ouviu, sobre o caso de Ricardo Salgado, algumas pessoas defenderem a vergonha que foi terem ido buscar o homem a casa, quando ele tinha prometido que passava por lá. E nem o deixaram ir no seu carro, teve de ir no da polícia.
Como é que a investigação não confiou num homem em que “aparentemente, alegadamente, talvez, não sei, dizem que é uma hipótese” não se deve confiar? E a questão do carro… então e se Ricardo Salgado, no caminho, se jogasse contra um poste, arrependido que estava dos crimes que aparentemente cometeu? Seria uma vergonha para a Justiça, que o tinha deixado ir pelos seus próprios meios. Mas como foi nos meios da polícia, foi uma vergonha para a Justiça porque não o deixou ir pelos seus próprios meios.
Mas enfim, estas diligências incomodam aqueles que não querem ver políticos e banqueiros nestas circunstâncias e por isso vamos lá então propor alterações ao código do processo penal para que isto não se repita.
E assim, um ex-banqueiro não deve ir no carro da bófia, quando muito vai a bófia no carro do ex-banqueiro, que há-de ser muito maior e mais confortável. Mas a boleia não será sequer uma necessidade se o ex-banqueiro se disponibilizar para ser ouvido, gentileza que se deve agradecer, confiando plenamente que no dia certo e à hora marcada ele lá estará. Se não estiver, foi porque não pôde, porque isto são pessoas muito ocupadas. E se nunca mais aparecer, lá terá as suas razões, provavelmente nem gostou do convite e está no seu direito, pois quando fugiu era um homem livre.
Também os ex-governantes devem ser tratados com especial cuidado. Por exemplo, um ex-governante que apanhe um avião em direcção a Lisboa deve ser ilibado de todas e quaisquer suspeitas, porque voltou para casa e isso é tão lindo. Ele podia ter ido para o Brasil, para a Venezuela ou até para Cuba, mas voltou para casa. Os portugueses deviam estar emocionados em vez de chocados.
Mas se ainda assim o Tribunal quiser ouvi-lo, então devem perguntar-lhe se tem vagar e pedir para escolher o local, que não deve ser o Tribunal, sob pena de se ser condenado em praça pública. O ideal é os interrogatórios decorrerem num shopping com muita gente, mas mesmo assim o juiz e o suspeito devem sorrir várias vezes para não causar qualquer desconfiança.