sábado, fevereiro 28, 2015

A Grécia e a alcateia

Tem que se lhe diga a questão do negociado entre Atenas e Bruxelas. Capitulou o governo grego, ganhou tempo, ganhou um primeiro round no braço de ferro com “as instituições”, como agora se chama a Troika? Cedeu para além do que devia, como afirmou o veterano da resistência Manolis Glezos? Poderiam discutir-se interminavelmente estas interrogações e outras. Mas não é disso que tratam as linhas seguintes.
Já há muito quem tenha notado como as políticas de austeridade passam por cima do corpo moribundo e, qualquer dia, do cadáver das nossas democracias burguesas. Há quem lamente o pequeno sacrifício, há quem o descreva em tom indiferente, e há quem aplauda mais essa vantagem colateral. De todos, ninguém condensou melhor numa só frase o carácter acessório destas democracias do que o inefável Cavaco Silva: os gregos não podem fazer o que querem.
Mas a democracia não está podre apenas no alto da sua pirâmide hierárquica. A podridão é sustentável e ramificada por aí abaixo, até aos escalões intermédios que aspiram a trepar rapidamente e a fazer carreira. E tem sido vê-los, aos fazedores de opinião, a uivarem em coro e a exigirem da Grécia um acto de contrição.
A cantata dos fabricantes de opinião é admiravelmente coordenada. Que o Syriza prometeu tudo e agora não pode cumprir nada. Que os acordos assinados, as ordens recebidas, as poses de joelhos, de cócoras e de rastos assumidas pelos governos anteriores, tudo tem de ser escrupulosamente continuado pelo Syriza. Que as dívidas pagam-se, os tratados respeitam-se e as botas, até de ocupantes alemães, lustram-se. Que um país tem de honrar a palavra dada e cumprir as obrigações livremente aceites por quem foi anteriormente seu legítimo representante.
E depois há o estado de necessidade económica. É que um partido irresponsável pode criticar quando está na oposição, mas, chegando ao governo, tem de fazer como toda a gente, tem de adoptar as receitas universalmente consagradas, tem de facilitar a vida aos “mercados”, tem de fazer a vida impossível ao povo. E esse povo, o grego, já se sabe que é composto de malandros e preguiçosos, se não as coisas não teriam chegado a este ponto.
Deve ser reconfortante para a alcateia que se assanha contra o governo grego, a espreitar ansiosamente cada sinal de capitulação, isto de saber que houve “unanimidade” dos eurocratas e dos 18 governos em Bruxelas para exigirem a capitulação do Syriza. É que os animais de alcateia têm uma psicologia própria e sempre os reconforta, além de serem numerosos, o sentirem apoio de unanimidades altamente colocadas.
Esquecem, talvez, um pequeno pormenor, porque o monopólio da opinião publicada já lhes turva a visão e já os impede de se enxergarem, a si próprios e aos outros: reverso dessa medalha de unanimidade dos eurocratas é a simpatia e a esperança que, nas catacumbas silenciadas da sociedade, suscita o atrevimento do povo grego, mestre mais uma vez da única democracia que importa.