Há muito que me interrogo sobre a origem da delirante
criatividade dos escritores portugueses. Qual será a fonte da fecundidade
literária de um António Lobo Antunes ou da sofisticada imaginação de um António
Mega Ferreira? Como é que as histórias e as personagens dos livros de Margarida
Rebelo Pinto, Maria João Lopo de Carvalho, José Riço Direitinho, João Tordo ou
Valério Romão foram geradas?
Lendo as declarações de alguns deles, é possível tirar
curiosas e invulgares conclusões acerca dos processos da escrita em Portugal.
“Porquê José Agostinho de Macedo?”, perguntou Paula Moura Pinheiro a Mega
Ferreira, autor de Macedo: Uma biografia da infâmia. Resposta: “Por
acidente, como eu penso que acontece com os escritores. Eu não sei se nós
escolhemos os temas se os temas nos escolhem a nós.” Coisa idêntica se passa
com Margarida Rebelo Pinto. Questionada pelo Correio da Manhã sobre
os novos projectos que tem em mãos, a autora de Sei Lá afirmou:
“Tenho uma lista. O mais certo é que um deles me apanhe na curva. São as
histórias que nos apanham, e não o contrário.”
Para António Lobo Antunes, os seus romances “estavam ali à espera”,
por isso “não posso dizer muito bem que sou o autor dos livros” (entrevista ao
extinto A Capital, 2004), tese que corroborou mais tarde no diário
espanhol El País, quando afirmou que “os livros fazem-se sozinhos
[…] a mão caminha sozinha”. Já Maria João Lopo de Carvalho, autora de um
romance histórico sobre a Marquesa de Alorna, foi mais específica e declarou ao Notícias
Magazine que tinha sido escolhida (nada mais, nada menos) pela própria
Marquesa para contar a sua história: “Na eternidade, onde ela está – tenho fé,
sou católica –, Leonor escolheu-nos [a ela Lopo de Carvalho e Maria Teresa
Horta, que também escreveu uma biografia da Marquesa] para a estudarmos de
maneiras diferentes e complementares.”
Poucos têm escapado a este paleio capaz de adormecer várias
pessoas ao mesmo tempo, nem sequer os saudosos Rosa Lobato Faria e Manuel
António Pina. A primeira, numa entrevista de 2007, afirmou que “O livro
escolhe-nos, não somos nós que o escolhemos a ele” e que “O romancista não
escolhe os temas. São os temas que o escolhem”; o segundo, questionado sobre
“Quando é que descobriu que escrevia poesia”, declarou noutra entrevista
referente a 2011: “Não escolhi ser poeta; ser poeta é que me escolheu a mim.”
Lá fora, o ofício de escrever depende da planificação e do
método, implica ler e estudar muito, exige passar várias horas por dia a
escrever. Os escritores portugueses não vão nisso. Trabalho, aprendizagem,
disciplina, esforço, estudo? Isso seria cair no óbvio e na redundância,
deixar-se encurralar nos lugares comuns e no tédio das frases feitas, das
fórmulas gastas.
Este surto incontrolável de revelações sobre o mistério do
génio criador, por muito que isto custe, está a fazer escola, frutificou entre
os mais novos. João Tordo, o jovem vencedor do Prémio José Saramago de 2009,
disse numa entrevista aoDiário de Notícias: “Eu descobri a Catarina
Eufémia [tema do romance Anatomia dos Mártires] porque ela me foi
acontecendo. Acho que foi mais ela que me descobriu a mim” (no princípio do
segundo capítulo do livro, o narrador confessa também que “No princípio de
Dezembro comecei a investigar a fundo a história de Catarina Eufémia. Uma vez
mais, temo estar a mentir porque, em abono da verdade, foi a história de
Catarina que me começou a investigar”).
José Riço Direitinho, escritor e crítico literário do Público,
afina pela mesma cartilha. A jornalista Diana Garrido, do jornal i,
perguntou-lhe: “Faz algum esboço das suas personagens e trama?” O escritor,
peremptório, garganteou: “Não, elas vão aparecendo. Deixo-as entrar, ou não.”
“Como é que dá o nome às suas personagens”, continuou a jornalista.
“Baptizam-se elas próprias. Quando chegam é como se já tivessem nome”,
asseverou o escritor, com uma gravidade digna de Prémio Nobel. Mais
recentemente, na mesma toada, Valério Romão, convidado do programa “Nas
Nuvens”, do canal Q (temporada 2, episódio 21), a propósito do livro de contos Da
Família, referiu: “Bem, enfim, eu acho que fundamentalmente não são os
escritores que escolhem os temas, os temas é que escolhem os escritores.”
Trabalho, aprendizagem, disciplina, esforço, estudo? Os
escritores portugueses não vão nisso. Isso seria cair no óbvio e na
redundância, deixar-se encurralar nos lugares comuns e no tédio das frases
feitas, das fórmulas gastas. Lá fora, em França, nos Estados Unidos, na
Guatemala, em Inglaterra, na Colômbia, na Nigéria, no Egipto, no Chile, etc., o
ofício de escrever depende da planificação e do método, implica ler e estudar
muito (para se nutrirem das mais variadas heranças literárias), exige passar
várias horas por dia a escrever (como os campeões de pingue-pongue chineses,
que treinam diariamente dez horas). Por isso escrevem e reescrevem, comparam,
corrigem, revêem, voltam a rever, cortam, rasuram, excluem, acrescentam,
compõem, recompõem, etc. Há aqueles que se dedicam a observar e a escutar com
atenção os outros, que registam os acontecimentos e dão notícia do seu tempo,
que viajam, correm daqui para ali, vão a África caçar leões e comem baleia
guisada ao pequeno-almoço, tentam alargar as suas faculdades inventivas e
infundir-se de novas possibilidades criativas, porque, enfim, é da experiência
da vida e do contacto com os outros seres humanos que nasce a grande
literatura.
Em Portugal, pelos vistos, o único talento necessário para
escrever livros é ser possuído, como aconteceu com a Virgem Maria, por uma
espécie de sopro que engendra, sem os próprios escritores darem bem por isso,
vindos não se sabe donde, romances, livros de poemas, temas, estilos, intrigas,
personagens, diálogos, comparações, intertextualidades, polifonias.
Pois os escritores do nosso pequenino país dispensam isso
tudo, preferem ficar à espera, como na missa, de ouvir a trombeta da
inspiração. Escrever, lá na cabeça deles, é um estímulo que resulta do
imprevisível; é algo inexplicável que não tem nada que ver nem com o trabalho,
nem com o método, nem com a memória. É um dom sobrenatural concedido apenas a
alguns, limitado a meia dúzia de eleitos, um impulso projectado na alma, ou um
princípio de acção que lhes foi comunicado do Alto, lhes iluminou a
inteligência e lhes moveu a vontade. E a literatura, afinal, uma matéria
obscura, um fenómeno que diz respeito não se sabe bem a quê – à graça
divina?, a uma emanação proveniente dos astros? –, um mistério no qual
ninguém consegue penetrar e cujo processo não podemos compreender (como a
Trindade de Pessoas em Deus, a Incarnação do Verbo Divino, etc.). Neste canto
do planeta acredita-se, portanto, que a literatura desce do céu como o espírito
que iluminou os apóstolos, contendo segredos que só o Altíssimo conhece (e mais
eles).
Em Portugal, pelos vistos, o único talento necessário para
escrever livros é ser possuído, como aconteceu com a Virgem Maria, por uma
espécie de sopro que engendra, sem os próprios escritores darem bem por isso,
vindos não se sabe donde, romances, livros de poemas (incluindo edições de
autor, edições críticas, edições definitivas, edições póstumas, etc.), temas,
estilos, intrigas, personagens, diálogos, comparações, intertextualidades,
polifonias, etc. Por exemplo,Caminho Como Uma Casa Em Chamas, o último
romance de Lobo Antunes, apareceu-lhe há meses quando estava a descer o estore
da sala (ao mesmo tempo que coçava os dedos dos pés na alcatifa, fazendo
estalar as articulações). António Lobo Antunes sentiu uma reverberação, um
repentino arrebatamento de energia. Algo golpeou-lhe depois a retina, os olhos
moveram-se debaixo das pálpebras e lacrimejaram. Sem conseguir controlar a sua
expressão e os músculos faciais, o corpo do escritor português começou a
aumentar. Lobo Antunes empalideceu, benzeu-se e o suor correu-lhe pela cara.
Sentiu uma vertigem e desmaiou. Quando despertou – “onde estou eu?!”, bradou –,
viu em cima da secretária o novo livro.
Com Mega Ferreira aconteceu algo semelhante: apareceu
grávido de Macedo: Uma biografia da infâmia. Enquanto dava o nó na
gravata, Mega Ferreira sentiu-se subitamente agitado por um torvelinho interno,
os seios aumentaram de volume, a pigmentação da pele mudou, a frequência
respiratória e as trocas gasosas elevaram-se, os ligamentos e as cartilagens
tornaram-se mais elásticos… Após uma série de contracções da musculatura do
diafragma e da parede abdominal, Mega Ferreira fez uns trejeitos medonhos, deu
uma bofetada na própria cara e expulsou finalmente, duma assentada, a Biografia
da Infâmia, O essencial sobre Camus eO essencial sobre
Proust.
Por seu lado, José Riço Direitinho estava a descongelar meio
frango quando as personagens dos contos A Casa do Fim lhe
foram inseminadas (através de métodos não invasivos) no local onde normalmente
ocorre a fecundação. De imediato, Riço Direitinho levantou as mãos e mexeu as
pernas, sentindo-se atacado de uma acumulação de gases e outras indisposições
corpóreas, que passo a relatar: visão turva, dor de estômago (aos jornalistas,
mais tarde, o escritor descreveu-a como um pouco mais forte que as dores que as
mulheres sentem durante o período menstrual), inchaço das mãos, dos pés, dos
tornozelos e das gengivas, seguido de pequenas borbulhas que dão comichão,
corrimento nasal (no nariz formou-se uma bolha de ranho, que aumentava,
diminuía, depois voltava a aumentar e a diminuir) e tosse seca persistente.
Extraídas dum óvulo masculino, saíram-lhe de rompante uma ninhada de
personagens com nomes bíblicos (como Eva, Moisés, Abel, Caim ou Zebedeu). Sem
saber bem como nem porquê, Riço Direitinho deparou-se com a obra feita e, de
tão contente, começou a bater palmas com as orelhas.
Já Maria João Lopo de Carvalho estava a desenroscar o tubo
da pasta de dentes quando foi penetrada – depois de muito pedir a Nossa Senhora
– pelo romance Marquesa de Alorna. O corpo da escritora, em estado
de beatitude, começou a segregar substâncias – que causam um cheiro
característico, cujo nome prefiro não publicar –, seguido de algumas
dificuldades de concentração e de um momentâneo ataque de miopia.
Repentinamente, das plantas dos pés começou a sair-lhe um romance histórico.
Por último, Valério Romão estava de chinelos a envernizar os
móveis quando foi acometido de uns estremecimentos internos, que incluíam muita
vontade de urinar, enjoos e olfacto mais sensível do que o normal (por causa
dos níveis elevados de estrogénio). Pungido pelo pressentimento da criação,
Valério Romão (sempre de chinelos) teve desejos por comidas exóticas. Ao abrir
o frigorífico, o tema “Família” saltou da gaveta das carnes e,
antropofogamente, senhoreou-se de Valério Romão, o qual, trespassado de
estranhos calafrios, expeliu os livros Da Família e O
da Joana.
Perguntarão vocês: quem terá sido o precursor de tão
original doutrina sobre as técnicas de criação literária? Qual será a
procedência deste profundo e fascinante misticismo que os nossos escritores
repetem tão fastidiosamente? O mesmo pergunto eu. Será um daqueles casos
portuguesíssimos de mania das grandezas, um extremado exemplo do mito da
literatura eleita (a nossa) por obra e graça do dedo divino? Nada disso! Depois
de muito cavar, depois de desfolhar e tornar a desfolhar os livros que para aí
se publicam (e de discutir o assunto em vários festivais de literatura),
cheguei por fim à conclusão que se trata de um caso apaixonante de capilaridade
literária.
Entre os escritores que mais têm influenciado a novíssima
literatura portuguesa conta-se Paulo Coelho, que um dia afirmou sobre a sua
obra: "Eu nunca penso nos temas. Eles me escolhem."
Na realidade, entre os escritores que mais têm influenciado
a novíssima literatura portuguesa conta-se o autor brasileiro mais vendido em
língua portuguesa de todos os tempos (mais de 100 milhões de livros): Paulo
Coelho, o criador de O Alquimista (e o escritor que mais
quilómetros percorreu entre o sul de França e Santiago de Compostela). Vejamos.
Quando lançou o livro Zahir, uma das perguntas que os jornalistas
fizeram ao escritor brasileiro foi se existia algum tema sobre o qual gostaria
ainda de escrever, ao que Paulo Coelho respondeu: “Eu nunca penso nos temas.
Eles me escolhem” (isto vem desmentir, diga-se de passagem, a ideia do
incipiente intercâmbio entre a literatura portuguesa e a literatura brasileira,
da pouca curiosidade que ambas inspiram uma na outra, do mútuo desconhecimento
da literatura produzida nos dois países irmãos). Por outro lado, reconheceu que
compra livros porque “são eles que me escolhem, me chamam da prateleira de uma
livraria” (como vimos, os escritores portugueses concordam intensamente com
Paulo Coelho).
Que Paulo Coelho é uma fonte copiosa de imitação já o sabia,
agora que os nossos escritores se tivessem convertido fanaticamente aos devaneios
do autor de Na Margem do Rio Piedra Eu Sentei e Chorei causa
alguma surpresa. Não há nada de mal em reter os ensinamentos dos precursores,
mas aquilo que faz um escritor forte, como diz Harold Bloom em A
Angústia da Influência, está na capacidade de fazê-los significar noutro
sentido – através de uma correcção criativa, de uma mudança de ênfase, de uma
distorção da doutrina original –, mostrando que eles (os precursores) não
conseguiram ir suficientemente longe. Como os nossos escritores não o fizeram,
e preferiram a subserviência subalterna, uma conclusão se impõe: têm ainda de
encontrar a sua própria voz. Eis o que me parece ser o problema central da
recente literatura portuguesa.