quarta-feira, abril 29, 2015

Corpo, cabeça e cauda


Há trinta anos, quando Mário Soares assinou nos Jerónimos o tratado de adesão de Portugal à CEE, era habitual a imprensa nacional fazer comparações com a Grécia para tentar identificar qual dos dois Estados se situava, como então se dizia e repetia, «na cauda da Europa». O processo decorria como numa corrida de estafetas, pois a cada momento, de acordo com as circunstâncias e os indicadores escolhidos, um deles superava provisoriamente o outro.
A absurda competição – desconheço se entre os gregos ela teve também lugar – impunha, de acordo com um raciocínio viciado que ainda não desapareceu de todo, a depreciação sistemática dos números apresentados pelos nossos concorrentes, no sentido de mostrar que, se nos mantínhamos longe dos «países desenvolvidos», a verdade é que tínhamos iniciado um processo que conduziria mais cedo ou mais tarde a entrar no seu clube de elite. Deixando aos gregos a triste sina de se manterem afastados dessa dose certa de desenvolvimento e prosperidade que configuraria aquela que um dia Hegel considerou a etapa perfeita e terminal da História.
Vista a partir da leitura dos jornais da época e do que então diziam os telejornais, a empatia, a grega empátheia, era mínima. O modelo proposto supunha a competição, rumo a um Eldorado desenvolvimentista que excluía a solidariedade entre os países que se encontravam mais próximos no que respeitava à fragilidade da economia, ao limitado peso político nas instituições europeias e à subsistência de uma desigualdade social endémica.
Esta incompreensão configurou um handicap jamais ultrapassado, posteriormente reforçado por um conjunto de mitos, construídos no contexto de uma cultura popular influenciada pelos meios de comunicação, a propósito da capacidade grega para ludibriar a contabilidade, para viver de forma indolente ao sol da Ática e do Egeu, para nos diminuir as receitas turísticas e, por fim, num plano simbólico mas não menos amargo, para estragar as contas da camisola das quinas nas competições de futebol. Os desafortunados helenos eram-nos sistematicamente mostrados como estranhos, incompreensíveis, de certo modo pouco honestos e fiáveis. E acima de tudo como adversários no esforço para escapar à última carruagem do comboio europeu.
Não é por isso de estranhar o desinteresse com o qual, fora dos círculos políticos da esquerda, entre nós tem sido observada a dura experiência de recuperação e de reequilíbrio iniciada, com o apoio expresso da larga maioria dos gregos, pelo governo do Syriza. A ideia de que as tremendas dificuldades pelas quais este passa não nos dizem respeito, não são connosco, parece instalada, com a natural cumplicidade do atual governo, temeroso da contaminação e preocupado com a possibilidade do eventual sucesso grego confirmar a iniquidade das escolhas que fez e pelas quais será histórica e politicamente responsabilizado.
A busca de uma saída do beco para o qual fomos empurrados passa pois pela aceitação de que existe um destino partilhado pelos países mais afetados pela insolubilidade da dívida pública e de que a Grécia fica afinal aqui ao lado, partilhando connosco a certeza de que uma solução justa passa pela instalação da solidariedade internacional como princípio fundamental de política.
O escritor de policiais Petros Markaris, filho de um arménio e de uma grega, nascido em Istambul e morador em Atenas, um tradutor de Brecht e de Goethe que nem sequer votou no Syriza, afirma que aquilo que hoje se vive Grécia é uma crise europeia que impõe uma responsabilização europeia. Nessa medida, a ideia de que existe um fosso intransponível entre a cabeça loira que comanda e uma cauda morena que se arrasta deixou de uma vez por todas de fazer sentido. A Europa será um corpo inteiro e equilibrado ou não será Europa. A chave para a aplicação deste princípio só pode ser partilhada ou deitada fora.