terça-feira, junho 30, 2015

Treta da semana: os caloteiros

Muita gente acha que o problema da Grécia, e da dívida pública em geral, é que uns gastaram e agora querem que os outros paguem. Como se a zona Euro fosse uma jantarada e os gregos, depois de encherem a pança, quisessem ir embora deixando os outros a pagar a conta. A realidade é mais complicada e, para ter uma ideia melhor do que se passa, é preciso compreender como funcionam os bancos. Aqui vai uma história sobre isso. 

O que mais distingue um banco de outras instituições é que, quando emprestamos dinheiro ao banco, toda a gente assume que ainda o temos. Está “depositado”. Assim, se eu for um banco e a Ana me der 100€, a Ana continua a ter 100€. Estão “depositados”. Mas eu tenho os 100€ da Ana e, se o Bruno quiser comprar uma coisa à Carla, eu posso emprestar-lhe os 100€ da Ana. A juros, é claro. O Bruno paga à Carla e a Carla deposita os 100€ que recebeu do Bruno. Ficam novamente comigo. Eu agora empresto esses 100€ ao David, também a juros, ele paga à Elsa, ela deposita-os aqui e assim por diante. É fácil perceber como eu posso ganhar bastante com isto. À conta dos 100€ da Ana, não só a Carla, a Elsa e quem mais calhar têm as contas recheadas no banco (eu) como eu estou a receber juros de uma data de gente com dívidas. À parte do requisito de reservar uma pequena fracção do dinheiro depositado, é assim que os bancos funcionam e é assim que, literalmente, fazem dinheiro. 

Se alguém quer levantar parte do seu dinheiro e eu tiver tudo emprestado a render juros posso recorrer ao Zé. O Zé é o banco central e só empresta dinheiro a bancos como eu, a prazos curtos e juros baixos, para desenrascar nestas situações. E o Zé pode sempre emprestar dinheiro porque é o Zé que define o dinheiro. O Zé também controla um pouco a festa ajustando os juros que me cobra mas, seja como for, quanto mais gente puser cá dinheiro e quanto mais do dinheiro dos outros eu emprestar mais vai pingando para mim. Por isso, tenho todo o interesse em emprestar, emprestar e emprestar. O meu trabalho é criar devedores. 

Mais cedo ou mais tarde, a coisa corre mal. O Fernando pediu-me 100€, inicialmente. Eu sabia que o Fernando não era de confiança mas sempre era mais um a pingar. Quando chegou a altura de pagar, como ele não tinha dinheiro, emprestei-lhe 150€ para me pagar o que devia e os juros. Agora está a dever-me 200€ e precisa de outro empréstimo para rolar a dívida. Mas a coisa com o crédito subprime nos EUA correu-me mal e agora preciso que ele me pague já tudo. Além disso, o pessoal anda a desconfiar que o Fernando se endividou demais e começam a ter receio de deixar o dinheiro comigo. Estou tramado se me vêm todos bater à porta a pedir o dinheiro que eu não tenho porque está todo a render em empréstimos. 

Felizmente, a Dona Maria é autoritária e as pessoas fazem o que ela diz, por medo, respeito ou hábito. Como a senhora gosta de dinheiro, facilmente arranjo com ela uma solução. Ela diz a todos que o Fernando se portou muito mal e agora precisa de um resgate. Além disso, anda muita gente a viver acima das suas possibilidades, por isso toca a fazer uma vaquinha para pagar as dívidas do Fernando. Em compensação, o Fernando vai ter de engraxar os sapatos a todos e lavar-lhes a loiça até lhes pagar o que deve. E com orelhas de burro, para aprender. Assim, todos juntam o que têm e entregam-me os 200€ que o Fernando me devia, mais um pouco para custos de processamento, consultoria, juros de mora e afins, e fica tudo bem. Tudo bem para mim, é claro, porque agora estão eles entalados com a dívida do Fernando. O Fernando é parcialmente culpado, é inegável. Mas não é o único culpado. Eu andei a lucrar arriscando o dinheiro dos outros e a Dona Maria, que levou a sua parte, ajudou-me a embarretar o resto do pessoal que, de outra forma, não teria nada que ver com o assunto. 

Em traços gerais, e a menos do nome dos personagens e da minha participação (infelizmente, não sou um banco privado) foi isto que aconteceu na Europa. Nos EUA, o Zé resolveu parte do problema dando dinheiro aos bancos. O Zé da Europa não pode fazer isso porque, ideia dos alemães, tem de manter a inflação a 2% mesmo com a casa a arder. Por isso, por cá, foi a Dona Maria que resolveu a coisa. Deu uns puxões de orelhas aos meninos com mais dívidas, transferiu para os bancos privados o dinheiro dos outros e agora praticamente todos os países da UE estão endividados sem ninguém perceber a quem é que se deve tanto dinheiro. Ou melhor, quase ninguém. Há sempre uns que percebem tudo desde o início e até andam bastante satisfeitos com o resultado. O gráfico abaixo mostra a amarelo vómito a evolução da riqueza mundial mediana, em percentagem, em relação à riqueza mundial mediana em 2008. A roxo está o mesmo indicador, mas para a riqueza mínima no grupo dos 10% mais ricos. E a azul a riqueza mínima para os 1% mais ricos do mundo. Apesar de alegarem que a crise foi causada por políticas socialistas que esbanjaram dinheiro com os pobres, os mais ricos têm enriquecido consistentemente quase 5% ao ano enquanto os remediados estão de volta a 2008. E a festa continua. 



1: Adaptado do Credit Suisse Global Wealth Report 2014 – Economics

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